sexta-feira, 19 de janeiro de 2018



“A Câmara Clara”, por Roland Barhes
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Pode acontecer que eu seja olhado sem o saber e disso não posso ainda falar, uma vez que decidi tomar como guia a consciência da minha inquietação. Mas, muitas vezes (demasiadas, quanto a mim), fui fotografado com conhecimento. Ora, a partir do momento em que me sinto olhado pela objectiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Esta transformação é activa: sinto que a Fotografia cria o meu corpo ou o mortifica a seu bel-prazer (apólogo desse poder mortífero: alguns communards pagaram com a vida a sua condescendência em posar nas barricadas; depois de vencidos, foram reconhecidos pelos polícias de Thiers e quase todos fuzilados).
Posando diante da objectiva (quero dizer, sabendo que estou a posar, mesmo fugidiamente), não arrisco tanto (pelo menos por agora). Sem dúvida é metaforicamente que extraio a minha existência de fotógrafo. Mas esta dependência, por muito imaginária que seja (e do mais puro Imaginário), vivo-a na angústia de uma filiação incerta: uma imagem – a minha imagem – vai nascer; irei ser parido como um “tipo fixe”? Se eu pudesse “sair” no papel como numa tela clássica, com um ar nobre, pensativo, inteligente, etc.! Em suma, se eu pudesse ser “pintado” (por Ticiano) ou “desenhado” (por Clouet)! Mas como aquilo que eu gostaria que fosse captado é uma textura moral fina, e não uma mímica, e como a Fotografia é pouco subtil, salvo em muito bons retratistas, eu não sei como agir do interior sobre o meu aspecto. Decido “deixar pairar” nos meus lábios e nos meus olhos um leve sorriso que pretendia “indefinível”, no qual daria a ler, juntamente com as qualidades da minha natureza, a consciência divertida que tenho de todo o cerimonial fotográfico. Presto-me ao jogo social, poso, sei isso muito bem, quero que também o saibam, mas esta mensagem suplementar não deve alterar em nada (no fundo, a quadratura do círculo) a essência preciosa da minha individualidade, aquilo que sou, para além da efígie. Gostaria, afinal, que a minha imagem móvel, atormentada entre mil fotos mutáveis consoante as situações, a idade, coincidisse sempre com o meu “eu” (profundo, como se sabe); mas é o contrário que é preciso dizer: sou “eu” que nunca coincide com a minha imagem, porque é a imagem que é pesada, imóvel, obstinada (aquilo em que a sociedade se apoia), e sou “eu” que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico quieto agitando-me no meu bocal. Ah, se ao menos a fotografia pudesse dar-me um corpo neutro, anatómico, um corpo que não significa nada! Infelizmente, sou condenado pela Fotografia, que julga fazer bem ter sempre um semblante: o meu corpo não encontra nunca o seu grau zero, ninguém lho dá (talvez só a minha mãe? Porque não é a indiferença que retira o peso da imagem – nada como uma fotografia “objectiva”, do género Photomaton, para fazer de nós um assassino, procurado pela polícia – é o amor, o amor extremo).
Ver-se a si mesmo (sem ser num espelho), à escala da história, é um acto recente. O retrato, pintado, desenhado ou miniaturizado foi, até à difusão da Fotografia, um bem restrito, destinado, aliás, a marcar um estatuto social e financeiro. E, de qualquer modo, um retrato pintado, por muito semelhante que seja, (é o que falta provar), não é uma fotografia. É curioso que não se tenha pensado na perturbação (de civilização) que este acto novo trás. Gostaria que houvesse uma História dos Olhares. Porque a Fotografia é o aparecimento de eu próprio como outro, uma dissociação artificiosa da consciência da identidade. E ainda mais curioso: foi antes da Fotografia que os Homens falaram da visão do duplo. Aproxima-se a heautoscopia de uma alucinose; durante séculos, ela foi um tema mítico. Mas se hoje é como se recalcássemos a loucura da Fotografia: ela só recorda a sua herança mítica por esse leve mal-estar que sinto quando “me” vejo num papel.

…”

Imagem: me by me

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