sábado, 21 de janeiro de 2017

Camisas e ética



Foi há uns trinta anos, pouco mais. Não posso precisar.
Fui contratado por uma agência para fazer as fotografias de uma campanha publicitária de uma fábrica de camisas. Um trabalho de envergadura, com produção complexa, que envolvia fotografar modelos em locais alugados, o produto acabado em lojas e a fábrica em laboração.
Fotografado em formato 9x12, com uma câmara Linhof que havia comprado pouco tempo antes.
Quando o trabalho me chegou às mãos já quase tudo estava combinado entre o produtor e o cliente, ficando a meu cargo as questões técnicas e estéticas, e pouco de publicidade ou comunicação.
O trabalho correu mais ou menos bem, com alguns episódios caricatos e algumas falhas da minha parte, mas que fui resolvendo como podia.
O último dia de produção era na fábrica. A mais complicada em termos de luz, considerando a enormidade do espaço: uma nave grande, cheia de gente a costurar, com uma mistura de luz natural entrada pelas janelas e telhado e luz fluorescente vinda do tecto. Um pesadelo, se considerarmos que o trabalho era a cores e não havia photoshop para correcções posteriores.
Enquanto o produtor e o cliente ficavam à conversa, eu passeei-me pelo espaço, tentado senti-lo: máquinas, pessoas, luz, acções…
E apercebi-me de sorrisos constrangidos das senhoras que iam costurando ou cortando as peças de tecido. Fui metendo conversa com elas.
Fiquei sabendo que tinham sido avisadas da nossa vinda, que haveriam de vir com uma bata lavada e penteadas para as fotografias. Mas bastantes, algumas com idade para serem minhas avós, não queriam ser fotografadas. Ou por timidez, ou porque não gostavam da forma como ali eram tratadas, ou tão simplesmente porque não gostavam de fotografias. Sempre em tom baixo de conversa, não fosse serem ouvidas.
Eu era ainda puto, a experiência reduzida e o trabalho poderia lançar-me para outros voos. Mas aquilo foi-me batendo forte. Muito forte! Eu iria fotografar gente que não queria ser fotografada mas que era obrigada a isso pelo patrão. Não gostei. Nem um nico!
Regressei para junto do grupo que me aguardava: O dono da fábrica, a sua secretária, o produtor e o Jorge F., o meu assistente, inigualável no seu desempenho, que me entendia e me completava nas tarefas como nenhum outro com quem trabalhei. E disse-lhes que o trabalho não podia ser feito como combinado.
Ficaram a olhar para mim com ar espantado. E expliquei com argumentos técnicos e estéticos não iriam ser possível fazer boas imagens com a presença humana, já que ficariam tremidas ou com cores estranhas e que a solução seria fotografar a fábrica e a maquinaria por pedaços em vez de por inteiro e sem a presença das operárias.
A discussão foi renhida, entre mim, o dono da fábrica e o produtor. De parte, o Jorge, junto da tralha entretanto já descarregada, olhava para mim e sorria discretamente. Disse-me, mais tarde, que havia percebido o que eu queria com aquilo.
Acabei por ganhar a batalha. Afinal, mesmo sendo puto, eu era o “expert” na coisa e aquilo que propunha não iria alterar em muito o conjunto do projecto inicial. E, depois do almoço, a produção parou por algumas, não muitas, horas.
As imagens foram feitas, com as máquinas bonitas, brilhantes e eficientes, com peças a meio do tratamento tanto de corte como de costura ou dobragem e embalamento. Mas sem ninguém contrariado nelas. Nem com sorrisos contristados nem com mãos calejadas ou com cicatrizes.
Quando, no final dos trabalhos, estávamos a arrumar a tralha e as operárias regressaram às suas máquinas, os sorrisos de algumas pagaram muito bem pago o só ter feito mais um trabalho, já agendado, para este produtor.
Ainda hoje as recordo.


Nota extra: A fotografia não é da época. Os originais, em diapositivo 4x5, foram entregues ao cliente na altura. Esta foi feita ali, a correr, para acompanhar o texto.

By me

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