sábado, 6 de fevereiro de 2016

"Quando o carteiro chegar"



Quando falamos de fotografia, muitas são as formas em que pode ser usada. Uma delas é a de livro monotemático, resultado de um projecto do seu autor.
Este é o caso: “Quando o carteiro chegar” é um livro com fotografias de caixas de correio, fotografado por Mário Rui Feliciani nos morros e favelas de São Paulo e arredores, no Brasil.Publicado em 1996.
Comprado quase que ao preço da chuva na Book House, ali para os lados do Saldanha, em Lisboa.
Leia-se:


“Quem morou no mato conhece o portão de longa data. É daqueles cuja madeira, por nova e bela, não recebeu tinta. A chuva e o sol alternaram-se a mudar-lhe a cor para o marrom enegrecido que se vê hoje, mas ainda não tiveram tempo para afectar a precisão das arestas de cada ripa. Saiba-se, portanto, que é um portão de ripas.
Atrás dele cresce o morro e, no seu flanco, uma escada arrancada da terra. No alto, na crista dessa vertente, a casinha simples em cuja janela se debruça um homem sisudo, que me hostiliza com o olhar. Arranco o carro, envergonhado da invasão, mas a imagem do objecto que me fizera parar obriga-me a voltar e estacionar do outro lado da rua.
Amarrada ao caibro, que é pilar do portão, pintada e protegida da chuva por telhado de zinco, só pode ser uma caixa de correio. Tosca, porém bem mais cuidada do que muitas das que tenho registado, só um detalhe deixa a cisma: o seu corpo, de bloco de concreto, não trás abertura para a carta.
Clico deixando a estranheza para depois e ouço meninos rindo, a caminho da escola:
“É já que ele te joga um balde d’água”. Mas ele não me vê e volto para o carro onde um vizinho me aborda.
- Ele está lá dentro…
- Eu sei, mas não quero falar com ele. Aquela é a sua caixa de correio? Estou fotografando caixas e…
“Ele é atrapalhado, moço. Faz anos mora aí sozinho. Tem espaço lá em cima, onde tinha uma outra casa que podia ter alugado, mas desmanchou o telhado e fez essa cerca. Os filhos são gente boa. Moram na cidade ao lado, mas – até mesmo eles! – ele bota para fora quando vêm. Mal vi o senhor e pensei “se ele sobe, não demora e desce correndo”. Veio da Bahia. Dizem que era de Sarava. Parece que por isso a mulher largou dele e ele veio morar aqui. Prós meninos eu arrumei colocação e hoje são pais de boas famílias. Mas o pai é assim, sempre sozinho. Trabalha de cuidar de um sítio. Cozinha na lenha. Grita muita bobagem. Noutro dia quase acertei nele, que tenho mulher e mãe morando comigo. Elas não têm que ficar escutando aquelas coisas, têm? Mas não vale a pena. É um coitado, que ninguém quer por perto. Se eu pudesse, mudava daqui, mas quem vai comprar uma casa com um terreno tão grande…”
Sempre sozinho. A mulher que abandona. O Sarava. Expulsa quem entra.

A caixa fechada. Pintada com cuidado. A carta que nunca vem. Que não quer que venha. A falta da fresta na caixa. A mulher fechada?”

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