sábado, 6 de junho de 2015

A carteira





Tinha previsto, naquele dia, um passeio fotográfico a pé pela serra:
Começaria na estrada Velha da Rainha, subindo até Monserrate, viraria a sul e continuando a subir até aos Capuchos, descendo depois até à barragem do Rio da Mula, seguindo depois pela estrada até à Lagoa Azul e acabando no Linhó, no final do dia.
Passeio longo, como já não faço há muito.
Quase no início, junto a um palácio na estrada, encontrei na berma um bilhete de identidade. De um rapaz com 14 anos, se a memória me não falha.
Ali caído, certamente seria levado pelo vento para o arvoredo, onde ficaria até o plástico dar de si, ou seja, anos a fio. Recolhi-o com ideia de o entregar numa esquadra de polícia. Certamente que eles saberiam fazê-lo chegar ao seu dono.
No final do dia, de regresso e já no centro da vila, lá fui à esquadra.
Disse ao sentinela ao que ia e ele fez-me entrar para falar com o graduado. Era uma graduada.
Pelo postigo, descrevi o sucedido, com indicação do local e daquilo que queria que acontecesse.
Olhou ela para mim, olhou para o bilhete, de um lado e do outro, olhou de novo para mim e teve uma saída brilhante:
“E onde está o resto?”
Fiquei com cara de parvo. É certo que não terei cara de muito inteligente, mas fiquei com cara de parvo. Depois de inspirar umas duas ou três vezes, retorqui-lhe:
“Olhe: vamos fazer de conta que nada disto aconteceu, que eu não ouvi o que me pareceu ouvir e recuamos no tempo.
Boa tarde. Encontrei esse bilhete de identidade na berma da estrada, junto a tal palacete, e gostaria que o fizesse chegar às mãos do seu dono.
Fui claro na descrição dos factos e do que aqui me trás, ou há que acrescentar algo mais?”
Não sei se foi do meu tom suave mas incisivo, se do meu sorriso quase mavioso mas capaz de, a qualquer momento, se transformar numa explosão de raiva que a derrubaria a ela, ao postigo e ao demais mobiliário atrás dele.
Sei é que engoliu em seco, tomou nota dos meus dados e me devolveu a saudação no final.
Fiz um sorriso simpático ao sentinela, à saída.

Hoje foi bem o oposto.
Eram quase onze e meia da noite e estava perto da estação onde embarcaria para casa.
Na berma do passeio uma carteira, pequena, de bolso, parecida com a minha.
Uma inspecção rápida disse-me que continha um bilhete de transportes, um papel qualquer e dois cartões, um de uma escola secundária, outro de uma biblioteca. De um rapaz.
Do outro lado do largo, andando uns cinquenta metros numa rua que nele desemboca, há uma esquadra de polícia. Era o local certo e faltava ainda um pedaço para o comboio.
À porta, três polícias fardados estavam na cavaqueira com uma senhora, que supus ser também agente. Disse ao que ia e um deles fez-me entrar.
Tomou nota dos meus dados, inspeccionou-se a carteira para verificar conteúdo e se teria valores e disse-me que, por ser sexta à noite, só na segunda poderiam entrar em contacto com a escola ou com a biblioteca para encontrarem o dono.
Despedimo-nos com sorrisos e um obrigado recíproco.

Num quarto de século coisas houve que mudaram para bem melhor. Esta foi uma delas. 

By me

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