domingo, 29 de março de 2015

O sol, as empenas e eu





Se pensarmos bem sobre o que fazemos, nós os fotógrafos, acabamos por chegar à conclusão que a nossa actividade funciona pela negativa.
Já nem falo, agora, na questão do enquadramento, em que com ele excluímos tudo o que nos cerca menos o que nos interessa. O sistema fotográfico assim nos obriga.
Falo, antes sim, que ao fotografarmos não estamos a registar a luz que nos agrada mas antes a modificação que ela sofreu. Quer seja por atravessar a atmosfera, quer seja porque algo se interpõe no seu caminho, quer seja a que é reflectida de um qualquer objecto ou ser vivo.
Não fotografamos a luz mas sim as suas consequências.

Tenho uma especial predilecção por fotografar empenas.
São telas grandes, impolutas de cores e irregularidades de formas, o local certo para que a luz, que não vemos, incida, se manifeste e nos mostre as alterações que sofre: as modificações de quando o sol está baixo no horizonte, atravessando mais atmosfera e materiais em suspensão; a reflexão na atmosfera, mostrando-nos um cor celeste tão breve quanto o pôr-do-sol; a interrupção no seu trajecto, feita pelos prédios vizinho, que reduz à bidimensionalidade fotográfica o que é de facto tridimensional…
Para todos os efeitos, sombras projectadas são fotografias, na medida em que é a escrita da luz que vemos.

Naquele dia atrasei-me no meu caminho, entretido que estive a ver aquele magote de gente jovem a desfrutar do jardim, do fim do dia e da antecipação de férias. Espraiados pela relva em pequenos grupos sentados nela ou não, cavaqueavam e riam-se por entre golos de cerveja barata com a displicência e alegria própria de quem ainda não entrou nas rotinas e obrigações laborais, parentais e horárias. Bom de ver, mesmo!
Quando decidi seguir e ir até a uma das minhas empenas favoritas constatei que era tarde: não chegaria a tempo de assistir à última fotografia ali exibida pelo sol.
Mas sendo que estava disposto a fotografar uma fotografia, escolhi outra: esta, que estava mesmo ali e que, fosse lá porque fosse, ainda não havia descoberto.
E se nós, fotógrafos, procuramos com a nossa parafernália tecnológica a perpetuidade do nosso trabalho, o universo, na sua eternidade, escreve breve e rápido, não se preocupando com conceitos estéticos ou tecnologias.

Gosto de empenas ao cair do dia. E de sentir, com a modificação das sombras, a nossa rotatividade. E a nossa brevidade.
Manias!

By me

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