terça-feira, 10 de março de 2015

Mãos limpas





Encontrámo-nos, casualmente, na cidade.
Ele no seu mister de escrevinhar o que outros veriam e ouviriam, eu nas minhas deambulações fotográficas, de intervenção ou não.
O dia caíra havia pouco e por perto alguns e algumas estavam por ali, como de costume, usando aquele espaço público e conhecido como ponto de encontro, troca de recados e recomendações aos parentes distantes, bem como alguns negócios públicos ou não tanto.
Ficámos um nico de conversa, em memória de tempos idos, falando de conhecidos e de actualidades, enquanto mais nada acontecia. Alguns risos de circunstância e piadas de múltiplos sentidos.
Eis que se aproxima um dos circundantes. As suas roupas velhas e pouco cuidadas condiziam em higiene com a pele e o cabelo e nada discordantes do passo pouco certo com que caminhava.
Depois de um “boa noite”, a sua voz continuou entaramelada, pedindo-nos desculpa por não estar nos seus melhores dias mas que em compensação, não andava a roubar. E se algum de nós lhe poderia dar um cigarro.
Tanto eu como o meu interlocutor estávamos a fumar.
Ele deu meio passo atrás, vocalizando uma qualquer desculpa que não percebi. Eu meti a mão ao bolso e retirei a cigarreira, que abri à sua frente.
Tirou um cigarro, com o cuidado possível dos seus gestos um pouco erráticos, pô-lo na boca e acendeu-o. Deu uma fumaça, funda, e agradeceu-nos. E, com mais umas palavras, esticou-nos a mão em gesto de despedida e agradecimento.
Enquanto a apertava eu, o que comigo estava por via dos acasos das ruas recuou mais meio passo, pondo as mãos atrás das costas.
O meu olhar no momento, bem como depois, enquanto o fumador se afastava, terá dito tudo aquilo que me queria brotar pela boca.
E ouvi: “Eh pah! Sei lá por onde andaram aquelas mãos sujas!”
Não comentei. Limitei-me a virar costas e afastar-me.

É curioso como, depois de termos trabalhado juntos uns bons anos, de ele ter mudado de patrão e agora de ofício, este é o momento que recordo com mais intensidade.
Espero que, na sua nova actividade, consiga continuar a ter as mãos limpas.
Porque a alma, essa, já nem com ácido!

By me

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