sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Sobre fotografia





O Homem é gregário! Sobre isto não sobram dúvidas. É-o para procurar a força que o grupo dá e é-o para encontrar a segurança que o grupo oferece. E, acessoriamente, é-o porque o Homem é uma animal que comunica e necessita de um igual para comunicar.
Mas o Homem necessita também de se afirmar no grupo em que se insere. Afirmar-se como pertencendo ao grupo e afirmar-se como alguém especial no grupo.
Pouco importa que este grupo seja no campo da política, do desporto, da religião ou filosofia ou das artes. Ele diz que é adepto de, praticante de, crente em e, ao dizê-lo, procura os adeptos de, os praticantes de, os crentes em com os quais se identifica e com quem pode partilhar interesses.
Mas também diz que é o maior adepto de, o melhor praticante de, o mais fervoroso crente em. E fazem-se competições, avaliações, demonstrações para provar que não só se pertence ao grupo como, dentro dele, se é especial.
Há ainda uma outra forma de grupo com a respectiva identificação e consequente tentativa de afirmação no seu seio: a posse! A posse de bens móveis ou imóveis define grupos de possuidores. E o gosto pela posse do possuído ou pela sua utilização. A evidência do indivíduo no meio do grupo de possuidores é aferida pelas qualidades do que se possui: a maior biblioteca, o melhor carro, o luxo da dómus, a tecnologia.

No caso da fotografia sucede o mesmo.
Podem-se considerar dois, talvez três tipos de grupos: os que gostam de ver fotografia e os que gostam de fazer fotografia.
A afirmação individual dentro do primeiro grupo passa pelo conhecimento que se tem sobre autores, técnicas, estéticas e história e pela posse de documentação sobre isso. Quantidade e qualidade: muitos livros, muitas fotografias, trabalhos de mestres, obras de mestres.
Já a identificação e afirmação no grupo dos que fazem fotografia se pode dividir em dois sub-grupos: os que possuem os meios técnicos de a fazer e os que possuem qualidade no que fazem.


Nota intercalar:
A fotografia de Daguérre tal como a imprensa de Gutemberg podem ser – e são – considerados marcos na história da comunicação e do desenvolvimento da humanidade. E se a imprensa veio substituir o trabalho elaborado e elitista dos copistas, fazendo com que a mensagem por códigos-padrão (escrita) fosse acessível a todos e em todos os lugares, a fotografia veio “paralelizar-se” com a pintura no acesso à mensagem gráfica sem códigos-padrão (imagem).
Simplificou os processos de produção da imagem, passando a ser possível a qualquer um a sua produção e globalizou o seu consumo, passando a ser possível um sem-número de exemplares, fiéis entre si, todos originais (ao invés da pintura), e fora dos museus e galerias privadas.
Indo mais longe, e com a simplificação das técnicas fotográficas, deixou de ser necessário ser-se um especialista para produzir fotografias. A indústria evoluiu no sentido de deixar ao consumidor apenas o trabalho de apontar e premir o botão, deixando o trabalho monótono e elaborado da revelação e impressão para os laboratórios e técnicos especializados.
Actualmente, com os suportes digitais, mesmo aqueles estão quase que condenados à extinção, já que câmara e computador pessoal se completam.
Acontece que a simplificação dos processos elaborados (hardware) não veio alterar profundamente os processos intelectuais (software) da criação da imagem.
Continua a ser necessário “Pensar” na imagem, imaginar o resultado final, saber-se o que se quer mostrar ou contar, conhecer como transformar a tridimensionalidade e os cinco sentidos na bidimensionalidade e na exclusividade da visão. E, neste campo, não há tecnologia que simplifique. Há que pensar e sentir, mesmo que não se pense ou sinta que se está a pensar ou sentir.
E não nos enganemos: Isto dá trabalho! Muito trabalho! É a tentativa e erro, é o estudo, são as inúmeras frustrações por cada satisfação, é a paciência, é a pré-disposição diária para o fazer…
Mas, se pensarmos um pouquinho no comportamento humano, chegamos à conclusão que o bicho-homem não gosta de trabalhar. Toda a evolução das civilizações e das técnicas foi e é no sentido de facilitar as tarefas, de minimizar o esforço, de aumentar a satisfação. Fotografia incluída!
Donde a lei, quase universal, do menor esforço, não se coaduna com o trabalho físico e intelectual. Aquilo que se procura – uma forma fácil e sem esforço de fazer fotografia – é quase uma impossibilidade!

Temos assim que, no grupo humano dos fotógrafos, a evidencia do individuo se torna difícil porque trabalhosa.
Mais ainda, esta evidência não depende apenas do esforço do próprio mas também (e muito) do reconhecimento que o grupo lhe dá. Não basta fazer fotografias que agradem ao próprio: Têm que agradar ao grupo dos fotógrafos.
Mas o conceito “Agradar” é particularmente variável. Depende das correntes estéticas em voga, depende da opinião dos lentes académicos e daquilo que o mercado e negócio impõe.
Desta forma, aqueles que fotografam para “agradar”, que procuram o destaque no grupo, estão dependentes das variações culturais e das opiniões de quem influi. O ser-se bom não depende do esforço próprio.
Resta assim, àqueles que se querem evidenciar na fotografia e que não conseguem ser reconhecidos pela sua actividade, gritarem bem alto “Eu posso fazer porque tenho a melhor ferramenta!”
Deixou de ser uma afirmação no grupo pelo desempenho para passar a ser pela posse. E esta, porque material e mensurável, é comparável. E o que tiver a câmara mais sofisticada, a objectiva mais potente ou luminosa ou o laboratório ou PC mais completo é um “mais” no grupo. Afirma-se como elemento de destaque!

Claro que, no meio desta análise bastante cínica e materialista, quiçá minimalista, falta incluir alguns elementos da espécie humana: aqueles que, pertencendo a um grupo, não se preocupam em o ser ou em serem especiais no seu seio.
São aqueles que fotografam apenas e só porque lhes dá prazer fazê-lo e não para reconhecimento no grupo dos que fotografam. E para quem o reconhecimento é um factor acessório e não vital. Usam a fotografia como forma de expressão pessoal como outros fazem com a escrita, a pintura e outras artes. E se os outros gostam ou não, problema deles. E, muito naturalmente, não se preocupam em se afirmarem pela ferramenta que possuem!
Alguns desta categoria obtêm do grupo – e da humanidade – o reconhecimento de qualidades. Alguns mesmo acabam por tirar proveito disso, já que conseguem juntar a actividade que lhes agrada com a actividade que lhes dá o sustento.
Alguns outros só tarde na vida, senão mesmo depois de mortos, são objecto desse reconhecimento de qualidade.
A uns e outros, é dada a categoria de mestria!

E, em chegando a este ponto e porque mais não me apetece escrever por agora sobre o tema (e muito haveria para dizer), resta-me deixar uma afirmação:
Nenhum daqueles que são considerados “Bons fotógrafos”, façam ou não disso o seu objectivo ou ofício, o conseguiram sem muito trabalho. E sem conhecerem, em profundidade, o mundo e o Homem!


 Imagem: “Um homem de caridade”, by Eugene Smith
Texto: by me

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