quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Enganos





Oh pah! Eu hoje enganei uma mão-cheia de gente!
Enfim. Sempre foi um engano honesto, já que eu mesmo estava enganado. Mas enganei, bolas!
Eu conto.

Apeteceu-me ontem, em terminando o horário de trabalho por alturas do almoço, ir ver o que constava numa das livrarias que tenho de referência em Lisboa: A livraria Barata.
Conheço-a desde antes da revolução, pese embora nunca tivesse desconfiado do que havia lá atrás. Nem ele sabia que eu estaria interessado, estudante do liceu que eu era e nunca apresentado por alguém de confiança.
A secção de fotografia oscila entre o interessante e o não tanto, dependendo da época, creio. Mas tem muita outra coisa boa de ser lida, incluindo as revistas, de que já fui consumidor regular. E era lá que as ia buscar.
Nas calmas, que apesar de frio e nevoeiro, o dia estava bonito e eu não tinha pressa, aproximei-me da porta e sou abordado.
Talvez que de origem ucraniana, p’lo sotaque, quis vender-me um Borda d’Água. Tinha dois na mão.
Não resisti ao apelo. Ao longo dos anos mantive o hábito, mesmo que quase que inútil. Mas os poucos cêntimos mensais a que corresponde são recompensados por mater esta tradição minha e nacional.
Negociámos o preço. Mas eu já sabia que assim seria.
Se tem o valor impresso, estes vendidos na rua são sempre acrescidos de alguns trocos e argumentados com necessidades várias. Sei que assim é e por vezes alinho, outras não me apetece e procuro um quiosque convencional.
O que fez esta compra transformar-se em algo de nada convencional foi o seguimento da conversa.
Disse-me que tinha uma factura para pagar (água, pareceu-me ao mostrar-ma) e perguntou-me se não teria eu qualquer trabalho, de qualquer tipo, que ele pudesse fazer para o conseguir. Obras, carregos, jardinagem…
Não tinha. Não tenho. E lamento não ter tido ou ter agora. Que esta abordagem, mesmo que talvez um pouco moldada às circunstâncias, sempre me parece mais honesta que outras, com receitas de farmácia, ou crianças de colo ou muletas, ou…
Afastei-me para o interior da loja menos contente do que minutos antes.
À saída, tendo eu mais um livro para ler, saudou-me com um sorriso, esperando no frio do nevoeiro que alguém lhe comprasse o almanaque que ainda restava ou lhe desse algum trabalho.
Hoje, no meu próprio trabalho, tirei o bendito almanaque Borda d’Água do saco e dispus-me a abri-lo. Que ele vem, como sempre veio, apenas com as folhas dobradas e não cortadas. Uma navalhinha ou, mais clássico, um cartão de identificação, fazem a festa, com um sabor nostálgico a livros antigos, ao cheiro do papel recém-cortado, ao prazer de aceder às primeiras páginas…
Com colegas comentei a tradição e acrescentei que esta já não é o que era. Que este ano o Almanaque Borda d’Água não vinha agrafado como sempre. Que talvez fosse sinal dos tempos, tal como o é a mudança notória na forma de impressão, mais moderna e “limpa”.
Olharam para mim, alguns deles, no desconhecimento do que fosse o almanaque, na ignorância do ter que o assim abrir e no espanto de estarem as folhas soltas.

Já em casa, fui melhor comparar que de memória a qualidade da impressão. E descobri que os tinha enganado. Tal como a memória me enganara.
O Borda d’Água não vinha agrafado. Pelo menos nenhum dos exemplares de anos anteriores que possuo.
O que vem agrafado, ou vinha no exemplar que ainda possuo, é o Seringador.
Editado pela Lello Editores no Porto, ao invés de pela Minerva em Lisboa, o Seringador “reportório crítico-jocoso e prognóstico diário (sic)” é o concorrente directo do Borda d’Água. Não tão conhecido por cá, talvez que no norte o seja, não é fácil de encontrar.
Sugere-se a leitura de um ou do outro, consoante sejam de uma ou outra região. Não concorrem com os Googles actuais, mas são mais divertidos, genéricos, de previsões incertas e sabedoria popular a gosto.
E se é certo que já poucos se lembram da página da net que leram na semana passada, na minha estante estão todos os calendários de há uns anos a esta parte. Sempre com uns sorrisos associados.
Uns com e outros sem agrafos. 

By me

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