quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Forasteiros e bilhetes



Tem dias que é assim: em não tendo pressa ou decidindo não ter pressa, deixo-me levar por aquilo que vejo ou imagino que vejo. Que sinto ou imagino que sinto. Que nem sempre tenho a certeza de ser uma coisa ou outra.
E não ter pressa ou decidir que não se tem pressa é uma dádiva dos deuses, da qual não são avaros se soubermos aproveitar.

Depois de tomar um café na gare do oriente, ainda faltavam dez minutos para o meu comboio. Ou vinte e cinco para o seguinte, se algo me prendesse por ali, por entre a chuva que caía fora dos abrigos, os passageiros que passavam e a luz que se ia escoando.
E aquele era um dos passageiros que me atraiu o olhar.
Um pouco mal alto e velho que eu, seco de carnes e com um panamá para a chuva a tapar-lhe com dificuldade a cabeleira ruiva a virar grisalha que irmanava em cor e tamanho com a barba, parecia estranhar o local. A pequena mochila com etiqueta e a pequena mala com etiqueta, ambas de avião, diziam tudo.
Primeiro olhou para o obliterador electrónico, com ar de quem não sabia para que serve. Depois para a máquina que vende os bilhetes, prestando atenção ao que faziam os do costume, mas também não avançando para ela. De seguida foi olhar para os cartazes dos horários, circundando-os mas não se detendo em nenhum. E o seu olhar descobriu a bilheteira convencional, com vendedores atrás do vidro. E foi.
Eu, cusco e achando que algo talvez não corresse bem, deixei-me escorregar pelo chão molhado, como quem não quer a coisa, só para ver o que acontecia.
Falava ele com o funcionário pelo buraco do costume, mas seria o mesmo se não estivesse. Que não se entendiam, fazendo o “biheteiro” gestos vagos mas bruscos apontando para o outro lado da gare. E, pelo que percebi do movimento labial, respondendo-lhe em português.
O homem do panamá e da mala afastou-se, dando lugar a outro cliente, mas com um olhar de quem não tinha aquilo que havia procurado: uma informação.
Não gostei! Não gostei do olhar de meio-perdido nem do que vi de desabrido por parte de quem vende bilhetes de comboio numa estação internacional ao tratar comum forasteiro.
Avancei e recorri ao “esperanto contemporâneo”, Inglês, perguntando-lhe se o poderia ajudar.
Sabia inglês, fluentemente ainda que com um sotaque que não consegui identificar e disse-me que queria comprar um bilhete para Faro e não sabia onde. E que era primeira vez que estava em Portugal.
Percebi tudo. Aquela era uma bilheteira para comboio urbanos e regionais. Os de longo curso são na outra ponta da gare, para onde o mal-encarado e incorrecto funcionário havia apontado. E lá levei o forasteiro até à bilheteira certa, deixando-o na fila. Com a secreta esperança de entenderem o seu inglês. Entenderam, que lho venderam, e lá se encaminhou para o cais de embarque correspondente.
Acenou-me enquanto subia as escadas rolantes, que o comboio partia em breve.
E afastei-me eu em direcção à bilheteira onde ele tinha sido mal-tratado. Informava, em português, que vendia bilhetes urbanos e regionais, sem indicação de onde ficaria a outra. Nem uma palavra, nem um sinal.
Gostei ainda menos!
A quantidade de gente de fora que ali chega, de comboio, camioneta ou mesmo vindo desde o aeroporto justifica indicações mais corteses. Escritas e, principalmente, por parte de quem vende bilhetes de comboio.
O meu nariz cresceu para além das barbas e achei que o devia meter no assunto. Rumei ao gabinete de atendimento do cliente, onde contei a história, indiquei quem assim tinha procedido e questionei o como sugerir a existência de sinalética adequada. E, de caminho, perguntei se quem ali trabalha, sendo uma estação internacional, não tem que saber inglês. Tem, foi a resposta.
E indicaram-me como e para onde fazer seguir a sugestão e a reclamação. Com o cuidado de me avisarem que tal sinalética tem que ser aprovada pela CP, que gere os comboios, pela REFER, que gere as linhas, e pela administração da GIL, que é quem gere a gare propriamente dita. Fiquei com a impressão que, a ser aprovado, virá a tempo de fornecer indicações aos passageiros oriundos de Marte.

Aguardo, agora, a inspiração para redigir o texto a enviar, sintético mas duro sobre o caso e a sugestão.

Que não quero que aquele vendedor de bilhetes da CP possa, de ânimo leve, assim tratar os passageiros que não falam português. No fim de contas, também são os bilhetes que ele vende que lhe pagam o salário.

By me 

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