sexta-feira, 24 de outubro de 2014

É!



O texto tem exactamente dez anos. Publicado assim, e com esta imagem.
Fala ele de uma senhora que conheci então no meu bairro.
Mas bem que poderia ter sido escrito hoje, sobre muitas outras senhoras de muitos outros bairros.



Não é nem nova nem velha. É, apenas!
Mas era. Era professora e o marido era engenheiro. E os filhos eram adolescentes. E a saúde era gratuita. E a educação era para todos.
Era o dinheiro na carteira e eram as vitrinas a exibirem montras de nada.
Eram as mentes quase vazias e as bocas eram fechadas, que os ouvidos eram muitos e eram denunciantes.
Era um ditador que mandava e os esbirros eram bons executantes.

Não é nem nova nem velha. É, apenas!
Mas é. É atrás de um balcão e o marido é entre ferrugem e ferramentas. E é avó – é tele-avó. E as seringas são folheadas a ouro e os livros são inatingíveis.
São os bolsos vazios e são as montras cheias. E é um salário para pagar o aquecimento.
São as cabeças cheias de ideia belas, e são as bocas escancaradas e surdas para ouvidos que são generosos mas não falam.
O ditador é de má memória e os esbirros são vagas lembranças.

Foi uma revolução de logística e estratégia.
Cada vez melhor sentados, esses estrategas definiram movimentos e avanços. Ao toque de uma tecla ou ao balancear um manípulo ficcionaram cenários e adversários, semearam balas e colheram cemitérios.
Instalado na tele-plateia, o público global assistiu na pantalha ao fim tétrico de uma fábula de encantar. Só mesmo ao cair do pano se viu quem era o lobo mau e como tinha consumado a violação da inocente mole de vítimas.
Com o finalmente exibido exorcismo de um sistema caduco, os shares subiram e os tele-ídolos consolidaram-se.
De uma trincheira ou varanda, via satélite ou repescadas do fundo de um rio, as imagens da queda de alguns regimes alimentam os media e asseguram a manutenção da calma no rebanho que vai sendo pastoreado aos poucos para que continue a fornecer a lã com que uns poucos se vestem.
O preço da liberdade vai assentando em louros, peças e tumbas. Louros em que cabeças, peças sobre quê e tumbas de quem? E liberdade onde?

Não é nem nova nem velha. É, apenas! Uma migrante.





(foto - Robert Frank, Londres, 1951)
By me

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