segunda-feira, 21 de abril de 2014

Interrupções



O meu prédio tem elevador. Aliás, tem três elevadores, que ele é grande e mora cá muita gente.
Apesar de prático, por vezes lamento não morar num prédio sem elevador. A minha condição física agradeceria, bem como a possibilidade de me concentrar sem interrupções inoportunas.
Era ainda de manhã, antes das dez, e eu estava naquele conforto epidérmico de nada ter em cima da pele que não o pelo e os óculos. E estava entretidíssimo de volta de um texto complicado. As ideias estavam cá, a sua forma é que teimava em não me brotar dos dedos. Acontece, de quando em vez.
Eis senão quando toca a campainha da porta.
Não gosto, raisparta o bicho! Não gosto de ser interrompido quando estou a tentar organizar ideias.
Nestas ocasiões costumo desligar o telefone. Ou deixá-lo tocar. Se quiserem, que deixem recado, que é p’ra isso que existem os “voice-mail”.
Mas o tocarem a campainha significa que está alguém, fisicamente, ali mesmo do outro lado. E que, muito naturalmente, ouvirá a música que tenho em casa, mesmo que baixo. Não atender é sinal de descortesia, coisa de que não gosto, também, de praticar. E lá fui.
Deixei-me ficar meio escondido atrás da porta. Não que tenha pudores do corpo. Sou o que sou e não há que esconder o que quer que seja. Mas sei que a maioria das pessoas não pensa assim e ficam incomodados quando alguém lhes abre a porta e lhes aparece assim, Nuzinho da Silva.
Do outro lado, no patamar, o casalinho jovem sorriu ao perceber a situação. Mas não desarmaram e avançaram com o que ali os trazia: uma mensagem bíblica qualquer, que haviam por força impingir aos que estivessem em casa num dia de semana a meio da manhã.
Estive vai-não-vai para recorrer a métodos extremos: dizendo-lhes que não estava interessado, deixar de parte qualquer resto de civilidade que tivesse sobrevivido à interrupção de que fora alvo e exibir-me na plenitude do que um qualquer deus, talvez mesmo o deles, me havia feito e moldado. Não o fiz.
Acabei por me conter, eivado de uns quaisquer preconceitos civilizacionais.
Fiquei-me por usar o processo habitual para cortar pela raiz o desenrolar destas conversas catequistas: “Que professo a religião shintoísta, que nada tem em comum com as cristãs, e que seria uma conversa inútil.”
Ficaram, como sempre, à toa. Que não sabem o que seja, mesmo que se trate de uma peta de todo o tamanho da minha parte. E zarparam com um “Que deus o acompanhe” também habitual.
Regressei ao meu texto e estive um bom pedaço a tomar balanço para o continuar.
Mas fiquei a lamentar morar num prédio grande, com elevadores. Se não os tivesse, não creio que tantos catequistas, de tantas confissões, subissem tantas escadas por dia. Que não me interromperiam, p’la certa.  


By me

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