sábado, 15 de março de 2014

Do arquivo



O prazer do não prazer

Estava à conversa com um velho conhecido ali do jardim quando o vi. Tinha parado a meio da marcha, feito um esgar que poderia ser de dor ou sofrimento, mexido como que a massajar a barriga da perna e, ao endireitar-se, parecia fazer um esforço para respirar.
Apesar de continuar à conversa, fiquei alerta. É que ele nada tinha de novo, bem pelo contrário e, por aquilo que estava a ver, estava a passar um mau bocado.
Mas como, passados uns passos, o esgar se repetiu, de alerta passei a interveniente e dirigi-me a ele, perguntando-lhe se o poderia ajudar em algo.
Ficou atónito, creio porque pensava que ninguém daria com a sua situação que, vim a saber depois, era crónica. E acabamos por ficar de conversa, que o meu velho conhecido tinha ido cuidar da sua vida.
Conversa longa foi. Mais de quarenta minutos, pela certa. De empregos e ocupações, passámos por economia, política, filosofia, artes. Platão e Sócrates fizeram-se citar, bem como Maquiavel e Bacunine. Picasso, Pessoa e Dali deram um ar da sua graça, tendo sido misturados com a origem e/ou destino do Homem e uns toques de agnosticismo pelo caminho.
Variados e densos, aqueles minutos!
A dado passo sou surpreendido com um pedido: “Dá-me um cigarro?”
“Claro que sim, tome”, disse estendendo-lhe o maço aberto.
“Sabe há quanto tempo não fumo? Pois há quase quinze anos. Mas agora apetece-me um!”
Fiquei boquiaberto com a declaração e ainda tentei dissuadi-lo da coisa, lembrando-lhe que o pior que se pode fazer é recomeçar o vício. Pior ainda, dada a sua idade.
Riu-se e, aceitando o lume que lhe dava, acendeu-o e deu uma fumaça, sem travar o fumo. E perguntou:
“Sabe qual é o meu prazer em fumar agora? O meu prazer é, agora, não o fumar!”
De facto, não mais o cigarro lhe voltou aos lábios, queimando-se por inteiro entre os seus dedos. Estes!


Mesmo que o dia não tivesse corrido bem até ali, mesmo que todo o mundo não estivesse com uma disposição jovial por via daquele dia primaveril contrastando com a invernia continuada, mesmo que não tivesse feito as fotos que fiz, esta feita ter-me-ia feito ganhar o dia.

By me 

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