terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O efeito borboleta



Nada acontece por geração espontânea. Há sempre um motivo para cada coisa que nos sucede, e um motivo atrás desse, e um atrás desse, e um atrás…

Se não tivesse dado aulas, não me teriam oferecido aquela caneta. A que ganhei afecto e que, com o passar dos anos, acabou por se estragar.
E se não lhe tivesse ganho afecto, não teria tratado de arranjar uma substituta quase igual, que me acompanhou anos a fio.
E se a não tivesse comigo, não a teria emprestado.
E se a não tivesse emprestado não se teria estragado naquele dia.
E se não se tivesse estragado naquele dia, não teria eu, hoje, ido à procura de uma igual ou parecida.
E se não tivesse vindo aqui para a encontrar, não teria feito esta fotografia.
E se não tivesse feito a fotografia, não teria embarcado, depois, naquele autocarro.
E se não tivesse embarcado naquele autocarro, não a teria visto.

Era preta e dava nas vistas. Pela sua magreza extrema. Mesmo só pele e osso. Apesar de não parecer doente ou toxicodependente. Apenas muito, muito magra.
Quando o autocarro chegou ao fim da linha, foi perguntar qualquer coisa ao motorista. Que lhe respondeu: “É logo ali. O Rossio é logo ali, é só ir andando.”
Mas o ar dela era de quem estava meio-perdida, quase a entrar em pânico. Apesar de estarmos nos Restauradores, uns 200 metros de distância, para quem não sabe é o mesmo que estar a 10Km. Meti-me ao barulho.
Abordei-a, ainda no autocarro, e perguntei-lhe se ia para o Rossio. E que sendo, que viesse comigo que eu também ia para lá. (Não ia, mas não era importante)
E fomos andando pela praça fora, comigo a ficar intrigado: por mais que alterasse a cadência do meu passo, ela ficava sempre – sempre – um passo atrás. Aquela senhora, preta, nos seus trinta e tal anos, muito magra, fazia questão de apenas caminhar atrás de mim!
Ao fim de uns trinta ou quarenta metros oiço-a dizer algo de pouco perceptível (não consegui identificar o seu sotaque) de onde se destacava a palavra “comboio”.
Esclareci com ela se queria mesmo ir para a estação e ela confirmou-o. “Vamos”, disse-lhe. “Passamos à porta.”
Cinquenta metros (ou setenta) depois, chegámos.
“É aqui e lá em cima. Sabe onde é?”
Não sabia de todo.
Venha que levo-a. E continuei.
Voltei a ser surpreendido. Não sabia usar as escadas rolantes e ficou bem assustada no primeiro lance. No segundo já se entendeu, depois de algumas palavras encorajadoras. Afinal, ninguém nasce ensinado.
Lá comprou o bilhete para a sua estação, que sabia de cor e disse-me, meio confidente, que havia saído de casa sem carteira nem nada.
Depois de a levar às cancelas e de lhe indicar qual o comboio, fez um sorriso, lindo apesar da magreza das suas faces, e disse-me enquanto se curvava para a frente:
“Obrigado! Que Deus lhe pague. Obrigado.”
Fiquei meio envergonhado e afastei-me. Afinal, não merecia eu tal agradecimento de forma alguma.
E, mentalmente, enderecei-o para aquele motorista da Carris que, nesta mesma manhã e com uma luz quase equivalente, olhou em redor antes de começar a andar, constatou que vinha alguém a correr, a uns bons cinquenta metros, travou o autocarro e aguardou. E nem ouviu o que eu ouvi, e que bem merecia. Que ele estava a trabalhar enquanto que eu… bem, pouco mais que em passeio.


Nada acontece sozinho e sem algo que lhe dê origem. Ainda bem que trago sempre comigo a câmara fotográfica.

By me

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