segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Talvez sacrilégio



É uma teoria que tenho, alicerçada em nenhum facto científico por mim testado ou comprovado, mas tão só deduzido:
Os lugares ganham parte das energias de quem os frequenta.
Se um local é assiduamente ponto de encontro de gente imbuída dos mesmos sentimentos e ânimos, parte dessa energia pessoal e colectiva acumula-se nas pedras, madeiras, ferros e demais constituintes do edifício e mobiliário existente.
Poderia aqui deixar um longo texto a explicar quais as razões e os exemplos para tal, mas para o caso pouco importa: acredito nisto e posso justifica-lo.
Tal como sei (ou acredito) que quem entre num local com essa “energia” dela recebe um pouco, sentindo-a e a ela reagir.
Mas também pode acontecer estar eu completamente errado e tudo isto mais não ser que patacoada para enganar os incautos e que a criação de ambientes que mexem com os nossos sentidos, aliados com os que nos dizem e à nossa própria memória, nos conduza a esses estados nostálgicos, ou místicos ou eufóricos.

Em qualquer dos casos, ontem tive um desses momentos místico/nostálgicos.
Passo por uma esquina, em Lisboa, e uma vez mais fico a olhar. A porta, as janelas, a recordar o quanto de pó se acumulava sobre as grades e as vidraças mas como o interior estava imaculadamente limpo. Ou não fosse a mais referenciada, quiçá a melhor, loja de equipamento usado de fotografia, de cinema ou de áudio da cidade. Não garanto se do país.
E quedei-me ali a recordar o velho Freire, com o seu cabelo branco e careca, e a sua forma de se relacionar com os clientes particularmente original: mesmo que o não conhecesse, se simpatizasse com ele haveria de encontrar algures na “tralha” que tinha aquilo que se pedia. Se não simpatizasse com ele (ou pelo olhar, ou pela conversa ou até apenas pela “química” da sua presença) a resposta era invariável: “Não tenho.” Mesmo que estivesse visível num das prateleiras da acanhada sala aberta ao público. Vendia por empatia e não por negócio.
Vim de lá diversas vezes, nos meus inícios destas coisas da fotografia, radiante e eufórico, com uma qualquer preciosidade que ali tinha pedido ou ali me tinha sido sugerida por ele. Para 35mm para 6x7 ou 6x9,5 ou para 9x12. E ainda tenho, a uso, algumas dessas coisas.

Pois estava eu a olhar e recordar quando saem p’la porta do que ali agora funciona duas mocinhas. Que se sentaram nas escadinhas para fumarem um cigarrinho. Fiquei um nico entre o sim e o não e o sim venceu.
Abordei-as e, pedindo desculpa p’la interrupção, perguntei-lhes se sabiam o quão importante é o espaço onde trabalham. E soube que sim, que sabiam.
P’los vistos, somos ainda muitos que recordam o velho Freire e que por ali passam e dele falam, que elas o citaram logo.
O melhor de tudo foi o uma delas se ter levantado e, jogando fora o que restava do cigarrito, me ter convidado a uma visita guiada p’lo interior. Incluindo os sanitários, forrados que estão com documentos (facturas, notas de encomenda…) da época, aparentemente encontrados no local aquando da transformação.
O dono estava no local e, quando eu ia descrevendo onde estavam o balcão, as prateleiras, a sua cadeira rotativa de madeira, ia confirmando e dizendo-me onde estavam as paredes, entretanto removidas. E indicou-me algumas peças de mobiliário de então, agora com outro uso: a escrivaninha, a mesa de ourives (nunca conheci uma ou outra), o cofre (que em tempos tinha estado meio tapado com prateleiras…
Se eu sou conversador, o dono também não é peco, pelo que a conversa seguiu um pouco até que eles se sentaram para jantar (antes da chegada dos clientes).
Pedi e fui autorizado a fotografar. Difícil mesmo foi conseguir ângulos que os excluíssem. Interessava-me o passado e não o presente. Interessava-me o captar hoje aquilo que fora, um passado não repetível.
E, juro, quase que me senti sacrílego ou blasfemo, ao estar a fotografar com a minha câmara de bolso e digital um local que foi um templo da película, das chapas, dos grandes formatos…
O melhor que consegui foi isto, com a escrivaninha a servir de aparador para pratos, talheres, guardanapos…
Mas talvez que esteja certo. Afinal, prazeres são prazeres, e os boca não são menos importantes que os da alma. E se o velho Freire, onde quer que esteja, tiver internete e puder ler e ver isto, talvez que não fique zangado por ver a sua loja de material antigo transformada numa loja de fresca comida.

Não provei o que ali se come. Não quis eu adulterar as minhas memórias ou a energia que recebi daquelas velhas paredes e móveis.
Mas talvez que um dia, a solo ou em grupo, vá degustar o que me pareceu ser apetitoso no Café Buenos Aires, nas escadinhas do Duque, entre o Rossio e o Bairro Alto.

Talvez.

By me 

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