quarta-feira, 8 de maio de 2013

Em trânsito




Desembarquei às oito e vinte e cinco, em Lisboa, deste comboio.
Viajei sentado como de costume. A esta hora, e embarcando onde embarco, ainda encontro lugares vagos. O que é, para além de cómodo, prático: uso este tempo para ler, escrever ou pensar. Se as coisas estiverem beras, ainda passo p’las brasas.
Hoje foi um misto: sentado, de olhos fechados, estive concentrado num tema que há que tempos que me anda a perturbar e para o qual tenho que arrumar ideias. E não é nada fácil.
A menos de meio do trajecto pensei “Bolas!” Havia começado a ouvir a voz de alguém que parecia bêbado de todo e que se estaria a meter com as pessoas. Abri os olhos e fui observando.
Já entradote, com uma careca razoável, vestido com roupas bem usadas mas limpas, barba de alguns dias, voz rouca, estilo “bagaço”… tinha todo o aspecto de quem ainda estaria com os copos, e desde a véspera, p’lo menos.
À medida que vinha andando p’la coxia, ia-se metendo com quem estava, com umas piadas das antigas mas com roupagens novas, meio brejeiras, em estilo de revista, mas sempre sem ofender quem quer que fosse ou com palavrões p’lo caminho. Com um pouco mais de atenção, percebi que ia escolhendo o que dizia em função de quem estava sentado ou de pé. E, estes, ou viravam o cara ou ficavam a sorrir com os dixotes deste menos comum passageiro.
Em chegando ao fim da carruagem, parou. Voltou-se e o tom de voz mudou ligeiramente. Foi dizendo que estava desempregado, que antes pedir que roubar e que agradecia que o ajudassem.
Surpreendeu-me, garanto. E p’la positiva. Que mais que estar a pedir ou estender a mão à caridade, este homem tinha estado a trabalhar. Pouco comum o seu trabalho, mas tinha conseguido fazer algo que não tem preço: fazer sorrir pessoas que, ainda de manhã, vão a caminho do trabalho.
Infelizmente, foi só o sorriso que consegui provocar, que a vontade de ajudar ou pagar a quem trabalha - e bem - ficara em casa.
Quando passou por mim, de mão esticada, esta vinha vazia. Agarrei-a e despejei nela o conteúdo do porta-moedas. Não sei quanto lá estaria, mas foi todo. Ainda quis ele dizer algo, mas fechei-lha, empurrei-a e agradeci-lhe o trabalho.
Sorriu e seguiu, continuando o seu mister, bom de ver e não fácil de fazer.
Eu? Eu deixei-me ficar, já nem pensando no que vinha a pensar, mas fixando algumas das piadas que havia ouvido. E segui para o meu próprio trabalho, do qual terei pago justo e sem piedades.
Como gostaria que também este fosse.

By me

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