sábado, 11 de maio de 2013

Cuidado com a língua fotográfica




Passou, um destes dias, um programa da série “Cuidado com a língua” que usava a fotografia como tema.
Vi-o, revi-o, pensei-o e enviei para a produtora do programa a mensagem que a seguir transcrevo.


Senhores:
Quando vi o vosso programa usando a fotografia como tema para bem usar a língua portuguesa, fiquei entusiasmado. “Este programa”, pensei, “quero eu para usar como referência sobre alguns disparates que se vão dizendo.”
Acontece que quando vi o programa não o estava a ouvir. Só alguns dias depois, e através do sitio da RTP o pude fazer. E logo mudei de opinião.
Que este programa não quero eu nem o irei usar como referência. E explico o porquê.
Começando logo com alguns erros técnicos “de palmatória”: o trabalho de laboratório, nomeadamente a positivação em papel da imagem, não pode ser sempre feita sob luz de segurança. Apenas quando se usa papel ortocromático, vulgarmente conhecido por “preto e branco”, isso é possível. No caso da fotografia ampliada para papel a cores, que é pancromático, isso é impossível.
(Se os termos “ortocromático” e “pancromático” parecem palavrões técnicos, veja-se um pouco de história e saiba-se o significado e origem dos prefixos “orto” e “pan”.)
Ainda dentro do laboratório, saiba-se que a “luz de segurança” usada não tem que ser obrigatoriamente vermelha. Alguns tipos de papel fotográfico ortocromáticos permitem usar lâmpadas ou lanternas de segurança verde-amarela. O que, acrescente-se, é quase o que se pode deduzir pelas imagens que nos apresentaram aquando da revelação do papel: o tom geral da imagem é bem mais amarelo-esverdeado que vermelho. Não seria fácil fazer a captura de imagem com luz vermelha, que tem muito pouco rendimento luminoso, mas um qualquer filtro na câmara ou o correcto tratamento posterior em edição fariam o serviço.

Em seguida, uma velha discussão: imagem analógica e imagem digital.
Toda e qualquer imagem fotográfica, digital ou não, é analógica. Existe sempre analogia entre a imagem captada e o respectivo assunto. E toda e qualquer imagem fotográfica só é visível depois de revelada. Ou, e como bem disseram, depois de “retirado ou véu”.
A diferença está em que a imagem captada em película necessita de “revelação” química e a captada por meios eléctricos necessita de “revelação” electrónica. Os processos de codificação e descodificação dos diversos tipos de formatos de imagem digital são, efectivamente, o revelar da informação que foi produzida pelo sensor da câmara que, antes de ser objecto desse tratamento, se encontra invisível. Ou “velada”.
O termo correcto para a fotografia captada em película será, se outro não quiserem usar, “foto-química”. Ou “… em película”.
O uso da expressão “fotografia analógica” surge apenas após a criação da fotografia electrónica ou digital e só porque haveria que dar um nome para diferenciar os processos de produção e respectivo arquivo dos processos intermédios.
Porque, e em olhando para duas boas fotografias, uma dita “analógica” e outra dita “digital” e já impressas, não se saberá qual ou quais os processos empregues. E ambas são analógicas, com toda a analogia ou semelhança entre o que nelas vemos e os assuntos fotografados.

Sobra uma questão velha de séculos: câmara ou máquina fotográfica.
Foi pena que em tudo o que disseram sobre a origem do termo “câmara”, se tivessem esquecido da “mãe” de todas as câmaras de produção de imagem: a câmara obscura.
Aquilo que é mais popularmente conhecido a seu respeito é o que nos conta Leonardo DaVinci. Mas os seus princípios remontam à antiguidade chinesa, à antiguidade grega, aos primórdios da cultura islâmica: um local escuro, com um orifício, que permite produzir uma imagem real, invertida e, geralmente, menor que o objecto.
A câmara fotográfica é isso mesmo; um local fechado à luz, onde ela entra por um espaço controlado, orifício simples ou com lentes compondo uma objectiva, produzindo uma imagem real, invertida e registável.  
E se a história e origem dos termos não servir para definir o termo certo, considerem-se dois exemplos: o cinema e o vídeo. Se os termos para identificar os sistemas de produção e captação de imagem cinematográfica ou videográfica são “câmara de cinema” e “câmara de vídeo”, porque se há-de usar “máquina” para a que lhes deu origem? Porque tem um “mecanismo”? Bem, a de cinema tem mecânica bem mais complexa que a de fotografia.
Sei que esta questão é velha, quase tanto quanto a fotografia. Mas, e muito curiosamente, é uma disputa que apenas existe em Portugal. Ao que sei, em nenhuma outra língua este problema se levanta, sendo o termo “câmara fotográfica” aceite como o único.

Faltou referirem duas outras questões, igualmente polémicas e linguísticas: o uso da expressão “velocidade de obturação”e o termo “lente”.
“Velocidade” é uma relação de qualquer acto em função de uma unidade de tempo. “Velocidade de sedimentação”, “velocidade de um automóvel”, “velocidade de escrita”. Quanto tempo para se obterem todos os sedimentos, quanto espaço se percorre por hora, quantas palavras se escrevem por minuto. É sempre qualquer coisa por unidade de tempo.
Acontece que aquilo que se regula numa câmara fotográfica é apenas o tempo que o alvo, película ou sensor, está exposto à luz. Apenas isto. Ajuste de tempo. Todo o mecanismo que destapa e volta a tapar o alvo se movimenta à mesma velocidade, seja qual for o ajuste que façamos. Que se trate de câmaras com obturador central (no interior da objectiva) quer se trate de câmaras com obturador plano-focal (no interior da câmara e junto do alvo).
Aliás, e em casos de dúvida, veja-se como esta tal “velocidade de obturação” é expressa: unidades de tempo. 1/500 de segundo, meio segundo, três minutos… Nunca uma referência qualquer coisa por tempo, como a luz (300000 quilómetros por segundo).
O termo “lente”, em questões de óptica, refere um pedaço de material, permeável à luz, cujas faces opostas não são paralelas. É um sistema óptico simples, cuja função é alterar a direcção da luz de uma forma controlada. Usamos lentes nos nossos óculos, usamos lentes nas lupas de aumento, usamos lentes (desta feita do modelo “fresnel”) na iluminação frontal de um automóvel ou num farol de costa.
Aquilo que as câmaras fotográficas possuem são conjunto ópticos, compostos de várias lentes de posição ajustável, as mais das vezes acrescidos de um mecanismo de controlo de fluxo luminoso a que damos o nome de “diafragma”. Alguns destes conjuntos possuem ainda o obturador no seu interior.
A estes conjuntos, complexos, dá-se o nome de objectiva.
A vulgarização do termo “lente” como sendo o sistema óptico que possuem as câmaras fotográficas (ou de cinema ou de vídeo) é um anglicismo a partir do termo “lens”.

A língua é uma coisa viva, evolutiva. E bem mais importante que o academismo é o servir para comunicar.
Podemos chamar a uma objectiva “batata frita” e intitular o tempo de exposição de “ovo estrelado”.
É indiferente que palavras usamos desde que nos entendamos. E muito brincam as crianças com isso, criando códigos de comunicação “secretos”, com palavras inventadas ou corruptelas da língua.
Mas, em termos profissionais ou quando se quer ensinar o uso de termos ou expressões “correctas”, convém ser-se rigoroso no que se transmite. Quiçá recorrendo a várias fontes de informação, científicas e credenciadas.
Ou então assumir que se trata de opinião, passível de contestação como esta que vos envio.
Não sou um lente na matéria, mas tão só um curioso. Mas custa-me ver ser dado como certo o que não o é, acrescido da responsabilidade dessas afirmações serem divulgadas pela televisão com o peso do rigor que um programa didáctico tem.
Como nota final: este texto ou missiva foi escrito ao desabrigo de qualquer acordo ortográfico. Assumidamente como tal. Mas também não me entendo como um especialista em ortografia.

Espero que o vosso programa continue a ter a efectiva simpatia e aparente simplicidade que nos cativa.

JC Duarte

Sem comentários: