segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Cinquenta escudos




O caso tem, possivelmente, vinte e cinco anos, não garanto.
O que garanto, isso sim, é que se trata de uma daquelas histórias que vivi e em que o que fiz, levado por sentimentos instintivos, ainda hoje me pesa na consciência.
Não sei se tornarei a viver algo de semelhante e, se o viver, se actuarei diferentemente. Espero bem que sim!

A linha de Sintra, aquela suburbana que uso diariamente, ainda não estava modernizada. E a estação de Benfica, que usava à chegada da grande cidade, ainda era de cais baixinho, edifício quase centenário e o acesso directo à linha era o habitual, já que a sua travessia se fazia por sobre um passadiço de madeira por entre os dormentes.
Na pressa matinal, a caminho do autocarro, estava junto da janela do maquinista da composição quando este apitou, sinal de que iria fechar as portas e iniciar a marcha. O que me fez dar um salto e olhar para quem apitava foi o prolongado da buzina, bem maior que o toque curto do costume.
Olhei-o e tinha os olhos muito abertos e fixos na linha à sua frente. O meu olhar seguiu o dele e, a uns cinquenta metros, entre os carris, estava um corpo deitado. Como não deveria estar e onde não deveria estar.
Corri! Não que seja médico ou técnico de saúde, mas não estando por lá ninguém, alguma coisa poderia fazer. E fiz!
Tratava-se de uma senhora de idade, talvez uns sessenta, talvez uns setenta anos. Com roupas modestas, limpas mas muito modestas, não aparentando qualquer mal visível que aquilo justificasse. Ou talvez aparentasse, já que era uma decisão e não um acidente: esperava que o comboio lhe passasse por cima.
Claro que a senhora, no seu desespero, calculou mal a coisa e ficou na linha depois da paragem e não antes. E jamais um maquinista a apanharia nestas circunstâncias.
Abeirei-me dela e tentei pela conversa demovê-la dos seus intentos. Inútil! Não se movia e, de olhos esbugalhados, fitava a composição imóvel que não a atropelaria. Entretanto chegaram funcionários ferroviários, vindos da estação, e juntos levantámos e levámos a senhora para o interior do edifício. Deixei-a aí aos cuidados de quem lá estava e de uma ambulância que estaria por pouco porque chamada para tal.
Ao afastar-me, porque nada mais ali poderia fazer, duas coisas me ficaram gravadas indelevelmente. Não a posição dela sobre a brita e chulipas. Não as palavras que pronunciou, poucas e ininteligíveis. Não as cores das roupas (recordo ser Inverno e que não tinha meias calçadas).
Recordo, antes sim, o cheiro! Para além do da urina, que se havia descontrolado, havia um outro que nunca senti antes ou depois. Animal, acri-doce, ténue mas presente. Acredito que tenha sentido o mesmo que os animais sentem em outros quando estes estão com medo ou em vias de atacar: adrenalina. O que não será de estranhar, dadas as circunstâncias. E com a proximidade da minha cara com o seu corpo quando a transportámos, não o poderia deixar de sentir!
E recordo a sua mão direita, fechada em punho e com uma força não esperada nesta situação, que se cerrava em torno de uma nota de cinquenta escudos. Seria, talvez, o que lhe sobrava e que a levaria aquele gesto de desespero. Ou, quem sabe, o que ainda tinha e que poderia servir para um funeral. Nunca o soube ao certo e qualquer outra opinião é tão válida quantos estas. Mas havia uma força férrea que não a deixava perder aquela nota!

O eu ter tirado aquela senhora daquela situação nada teve de especial. Qualquer outro, ali e então, teria feito o mesmo. E se não fosse por ela mesmo, seria, como ouvi ainda alguns comentários ao afastar-me, para não atrapalhar a vida dos que, no comboio, queiram ir trabalhar.
Mas estou arrependido de o ter feito! O suicídio é o último gesto de liberdade do ser vivo, um último protesto contra o que quer que seja, a última solução para se aliviar de um qualquer jugo ou sofrimento que atormente.
Posso eu prender alguém? Posso eu censurar um protesto, o derradeiro? Posso eu obrigar alguém a viver em sofrimento ou opressão?
Não posso! Em consciência não posso! O impedir um suicido é isso mesmo e não posso, ou não devo, fazê-lo. Sob pena, entre outras questões morais, de entrar em contradição com o que entendo ser a liberdade do individuo.
Claro que a maioria das sociedades condenam o acto suicida! Por questões de organização, por questões de poder, por questões religiosas, por questões materiais. Que o suicídio é, também, uma forma de fugir ao controlo da sociedade e o cidadão comum, tal como a estrutura da autoridade, não podem consentir tal afronta. E, nada podendo fazer para corrigir um acto consumado, fica sempre a ameaça do manto de vergonha lançado sobre o próprio e a sua família.
Mas se não posso obrigar ninguém a morrer, quer seja por crime dito comum, quer seja por actos bélicos, quer seja por crime dito acto de justiça, então também não devo impedir ninguém de morrer, se essa for a sua vontade!

Impedi ou colaborei no impedimento de um suicídio. O meu gesto não foi determinante mas foi cúmplice. De tal me penitencio e tenho penitenciado, sempre com a esperança de, numa outra situação semelhante, não repetir o gesto!

By me

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