sábado, 9 de julho de 2011

Ir buscar lã...



Aqueles que fazem do andar a vender de porta em porta o seu ganha-pão têm que estar preparados para muitas surpresas. Nunca se sabe, em rigor, o que poderá estar do outro lado a abri-la. Poderá ter-se uma ideia pelo bairro, pela rua, pelo estado de conservação do edifício ou até mesmo pelo tapete da entrada. Mas quem e como abre a porta é sempre uma incógnita!
Não creio que aquele e aquela, a roçarem os trinta e a ultrapassar o limite da obesidade, estivessem preparados para o que os esperava.

Quando a porta se abriu, os seus olhos vacilaram entre a farta pelagem branca, a desarrumação entrevista atrás dela e a intensa luz que vinha lá de dentro. Mas rapidamente recuperaram e iniciaram a rotina de vendedores.
Com uma saudação de boas noites, recitaram os seus nomes e disseram ao que iam: Seguro de saúde. Proclamaram o nome da companhia que representavam e pouco mais, que quem os ouvia interrompeu-lhes a cantilena.
Da soleira da porta ouviram dizer que por ali não se estava interessado em semelhante produto sendo que também se era contra a sua existência.
Se a primeira parte do que escutaram era habitual – afinal a maioria das pessoas recusa negócios de porta em porta – a segunda saiu da normalidade. Mas não o suficiente para os fazer recuar, pelo que tentaram manter a conversa, já que gelo estava quebrado e a comunicação já existia – e esta é a primeira conquista de um vendedor. E questionaram o porquê de tal afirmação.
Azar!
O que ouviram de seguida não estava de todo nos manuais, nas experiências anteriores ou no que tivessem ouvido num qualquer curso de formação profissional.

Que os serviços privados de saúde, sob a forma de seguros ou qualquer outra, são um meio de a sociedade se afastar dos que poucas posses têm; que quanto mais forem os subscritores deste tipo de serviços, maior a tendência de redução no investimento dos serviços públicos de saúde; que há quem advogue a opção individual de se pertencer a um sistema publico ou a um privado em exclusividade e que esta escolha fará diminuir as contribuições para a existência de meios humanos e materiais do serviço publico; que tanto tem direito ao apoio na doença e velhice aquele que ganha muito como aquele que ganha pouco; que uma intervenção cirúrgica ou medicamentos custam o mesmo dinheiro aos dois.

O discurso convicto abalou-os mas não os demoveu. Aproveitando uma pausa para respirar, investiram com o argumento de que aquela era a linha seguida pelas sociedades modernas e a tendência do futuro.
Mas não lhes foi dado muito tempo para defenderem o seu ponto de vista.

Ouviram de volta que também a escravidão já tinha sido a base das sociedades modernas; que o açoitamento publico tinha feito parte da legislação do seu tempo; que o direito de pernada tinha vingado durante séculos. E que tudo isto tinha sido banido, a bem do ser humano em geral e da diminuição do fosso entre os mais abastados e os mais pobres.
E que contra os que tentaram suster ou inverter esta evolução igualitária, sempre tinha havido umas munições reservadas ou umas cordas bem atadas e bem empregues a surtir o efeito desejado.

Neste ponto da conversa, e sob a pálida luz da escada, as convicções e a vontade de apanhar um incauto no seu negócio de seguros estavam a abanar como vime ao vento. Na verdade, não estavam preparados para este discurso! Por fim, ainda que tivessem balbuciado uns fracos e pouco convictos argumentos, receberam o golpe de misericórdia.

Aquelas barbas, tendo por trás aquela luz fortíssima, afirmaram que lamentava que estivessem a fazer aquele trabalho, ainda que entendesse que tivessem que ganhar a vida. E, sabendo que recebiam misérias por cada contrato efectuado, esperava que nunca viessem a necessitar do Serviço Nacional de Saúde que estavam a ajudar a destruir.
A porta fechou-se com as saudações habituais de cortesia e com a declaração que estava ali a decorrer um trabalho de fotografia e que não se dispunha de muito mais tempo.

Duvido que tenham conseguido vender alguma coisa neste bairro naquela noite. Não apenas é um suburbano de poucas posses como é verão e as pessoas têm tendência a esquecer as doenças quando está bom tempo. Em qualquer dos casos, aqueles dois não fazerem negócio é uma vantagem para todos nós.
E nessa noite, no lugar de venderem, aprenderam mais qualquer coisa!


Texto e imagem: by me

Sem comentários: