quarta-feira, 20 de julho de 2011

Atendedores de chamadas, fatos e gravatas



Quando cheguei a casa, naquela noite, tinha uma mensagem na maquineta.
À época, as comunicações móveis estavam restritas a pombos correio, sinais de fumo, heliógrafos e quejandos, pelo que o que funcionava como forma de comunicação, em não sabendo onde estaria o destinatário, eram os atendedores de chamadas. Aquilo a que hoje chamamos de “voice mail”, mas numa maquineta em casa.
Eu tinha uma dessas, com variadas cassetes de atendimento “personalizado”, cujas músicas de fundo à minha voz variavam de canto gregoriano a brocas de dentista, de autoclismos a tango, e demais sons igualmente solenes e formais, com dizeres em conformidade.
Dizia-me então a maquineta, pelo voz do meu chefe, que: “Amanhã às oito nos estúdios, para seguirmos logo para Belém. Trás fato e gravata.”
Calou-se a voz de onde vinha e eu fiquei a olhar para as luzinhas piscantes e botões variados.
A informação não me surpreendia. Afinal eu estava escalado para aquele trabalho havia tempo e até já sabia com exactidão o ponto onde iria trabalhar. E não seria coisa de pouca monta, que muitos conheço que pagariam bom dinheiro para estarem onde eu iria estar. Que por “Belém” deveria entender-se o “Palácio Presidencial em Belém” e a ocasião era o encontro entre o Presidente da República, Mário Soares, com o Papa, João Paulo II. Mais ainda, o local exacto onde eu ficaria seria na sala onde o encontro decorreria, com troca de cumprimentos e lembranças, seguido de uma conversa numa outra sala, privada, que incluiria Maria Barroso. E eu, por dever de ofício, estaria a uns sete ou oito metros dos microfones, que mais perto a segurança papal não permitia.
Sendo que já o sabia, o que me deixou a olhar para a maquineta não foi a informação: foi a recomendação. É que, não lhe podendo eu responder, levantava-se um problema grave: eu não possuía um fato.
Enfim, não era completamente verdade: tinha um fato, comprado de propósito para um evento muito especial, havia uns bons anos antes. Tantos ou tão poucos, que já me não servia. E passar umas boas horas de pé, a trabalhar, em circunstâncias de alguma formalidade e com roupa apertada e com a barriga a espreitar por entre os botões não estava, de todo, nos meus planos.
A opção foi, muito naturalmente, levar a fatiota que já estava destinada para função, de preto e com colete preto e longo, em mangas de camisa. Quanto à gravata, a coisa foi mais fácil de resolver. Tinha iniciada havia pouco uma colecção que tenho por rara ou única: gravatas cuja decoração sejam camelos ou dromedários. Entre elas, uma mais discreta faria a festa.
Quando lá cheguei fui, muito naturalmente, olhado de lado e creio, sem ter a certeza, que o meu chefe terá ponderado a minha substituição. Mas as questões de acreditações junto do polícia portuguesa e do Vaticano, evitaram-no. Suponho. E o trabalho correu bem, pondo de parte algumas situações divertidas e igualmente únicas.
Poder-se-á agora perguntar porque não tinha eu (e não tenho) um fato para usar nestas ocasiões.
Para já porque os raros que tive ao longo da vida foram encolhendo (ou eu engordando, se preferirem) e já me não servem.
Por outro lado, sinto-me particularmente desconfortável com um casaco, supostamente formal, a ficar amarfanhado com um saco fotográfico num ombro, ou uma mochila nas costas.
Acrescente-se que, ver-se por sob as abas inferiores do casaco a tralha que faço muita questão de trazer no cinto não apenas não é bonito como não é seguro. São tentação para carteiristas e motivo para revistas policiais. E já passei pelas duas.
Como se tudo isso não bastasse, os pobres coitados do bolsinhos dos coletes de fato são tão minúsculos que mal lá cabe um isqueiro Zippo, quanto mais um maço de cigarros ou uma tampa de objectiva um pouco maior, para já nem falar de um fotómetro. Completamente inúteis, esses bolsos!
Quanto a gravatas, tenho bem mais agora que aquando do episódio relatado. Mais pela graça que outra coisa. Até porque, e para além dos códigos implícitos no uso de gravata, no meu caso ela não se vê. Coisas que acontecem a quem usa barba bem grande.
Além do mais, eu e “Dress Codes”, não obrigado.

Nota extra: por oposição, consigo imaginar como se sentirão despidos os funcionários de um dos nossos ministérios a quem, por decisão ministerial, foi interdito o uso de gravata em serviço e nos meses de verão.
É que essas pessoas que fazem questão de respeitar os códigos e etiquetas e que fazem por passar despercebidos por via da uniformidade do traje, servem-se do valor de mercado dos relógios que consultam, do alfinete que lhes segura a gravata na barriga ou dos botões com que fecham as mangas da camisa para se evidenciarem.
Para já não falar no acompanhar das modas vigentes no que a gravatas respeita: finíssimas ou rabos de bacalhau, lisas ou de fantasia (discreta), com nós quase desaparecendo por sob o colarinho ou, ao invés, com outros que quase impedem o baixar do queixo, de grandes que são.
Pobres deles que, em sendo impedidos de usar este símbolo de masculinidade, se sentirão perdidos nas recepções e corredores, por decisão de uma senhora ministra.

Texto e imagem: by me

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