domingo, 15 de agosto de 2010

Um tesoiro


Foi há uns quatro anos, mais coisa, menos coisa.
Circulava eu na zona da Praça do Chile, em Lisboa em busca de lojas de restauro de moveis. Melhor dizendo, o meu objectivo era encontrar quem vendesse madeiras que não apenas pinho folheado. Como as duas casas que conhecia no ramo já tinham fechado, optei por ir perguntar onde se poderia fazer o negócio junto de quem as compra.
Mas mesmo o negócio de restauro de móveis está em decadência. Agora tudo se compra novo ou pseudo velho e já ninguém, ou quase, se preocupa em recuperar uma peça de mobiliário antiga. E, por vezes, a questão não se prende com o valor económico mas antes com as afectividades que podem emanar de uma cadeira ou de uma cómoda.

Assim, o meu deambular pelas ruas daquela zona citadina, estava a ser infrutífero. De um lado do passeio, ia vendo as montras dos dois lados da rua, tentando manter-me na sombra por via do calor. Lojas de bairro, como já não se encontram nos dormitórios suburbanos, onde cada cliente é tratado pelo nome e objecto de uma saudação à passagem. Que não era o meu caso, estranho semi-intruso nas ruas e vielas.
Eis senão quando um ruído me atraiu a atenção. De dentro de uma loja, um motor trabalhava, acompanhado pelo som de metal a ser moldado. Mesmo junto ao meu ouvido direito. E ao rodar a cabeça, dei com a placa: “Afiam-se facas e tesoiras e reparam-se guarda-chuvas”.

Já não sei quando tinha sido a última vez que tinha dado com este comércio. Lá o amolar facas e tesouras ainda se vai encontrando, aqui ou ali, de mistura com os sapateiros e fazedores de chaves, nos centros comerciais. Que dos ambulantes, já nem a sombra! Agora reparação de guarda-chuvas é que não. Peça rara!
Aproveitando o ensejo, decidi dar um pouco mais de operacionalidade à lâmina do meu canivete. E entrei.

A idade do seu proprietário pedia meças à idade da loja, a dar fé no aspecto do balcão e das peças para venda. Uma frágil parede de vidro martelado e madeira separava a zona do balcão da zona da oficina, com um largo postigo aberto. E era do lado de lá deste que vinha o ruído. Facas de um talhante, suponho eu, estavam a ser tratadas com esmero e atenção: Esmeril, balde de água, olhar com atenção. Esmeril, balde de água, olhar com atenção. Esmeril, água e atenção. Esta a rotina de quem estava a dar um pouco de carinho àquelas lâminas, as fagulhas do aço afagado saltando, qual fogo de artifício em pleno dia.

Quando deu por mim, pousou a faca e veio ao meu encontro. Mostrei-lhe o meu canivete e perguntei-lhe se poderia dar-lhe um pouco de atenção.
Examinou-o, menosprezou-o pelas poucas ferramentas que possuía e sorriu quando lhe retorqui que só as usava quando tinha preguiça de ir buscar a mala da ferramenta. Lá acabou por o aceitar, sugerindo-me que fosse dar uma volta enquanto acabava o que tinha entre mãos. Mas eu preferi ficar por ali, vendo o tratamento que lhes dava e o cuidado que lhes dispensava.

Enquanto o grande esmeril ia afagando as grandes facas e cumprindo a sua função, entretive-me a olhar o que me rodeava.
Produtos para venda eram escassos: Umas tesoiras (ou tesouras, como se queira), umas facas de cozinha de grande lâmina, umas pinças de depilação e uma de relojoeiro que esteve quase a ser trazida para casa.
Atrás do balcão, entaladas entre a madeira e o vidro, diversas cartas para diversos destinatários. Umas com ar recente, outras bem pelo contrário. O que aquilo me sugeriu em breve foi confirmado: aquele espaço era um ponto de encontro de vizinhança que, além de uns dedos de conversa, ali ia buscar o correio. Na meia horita que ali estive, entraram um velhote e uma velhota, que se encostaram familiarmente no seu canto preferido e trocaram impressões sobre o tempo e umas obras ali ao fundo da rua.

Nesse entretanto, o meu canivete era confrontado com um novo gume. Tinha sido desligado o grande esmeril e activado um outro de menor diâmetro. Depois dele e das fagulhas, a roda de polir fez o seu trabalho, apagando os sulcos mais profundos. Para remate da intervenção metalo-cirúrgica, foi retirada da parede uma pedra de amolar, que teria entrado aquela porta aquando da inauguração do edifício: o seu centro estava fino, quase frágil, comparado com os seus bordos. A sua vetusticidade era tal que implicava estar presa num suporte de madeira, não fora quebrar-se. Nem imagino as toneladas de aço feito lâmina que ali foram afagadas. E o meu modesto canivete foi um deles, passando por ela com esmero, quase carinho.

De regresso à loja com ele na mão, o velhote que se movia devagar mas em quem se via ainda muita energia interior, entregou-mo para eu verificar a qualidade do trabalho. Perfeito. Polidinho, brilhante, a raspar e cortar a superfície da unha com se queria.

“Quanto é?”, perguntei eu enquanto o fechava e devolvia ao estojo do cinto.
“Nada”, retorquiu-me.
“Como?!”
“Não é nada. Está feito e pronto!”

A minha boca deve ter ficado com o diâmetro da roda de polir.
Bem sei que naquela oficina de amola tesoiras e navalhas e reparação de guarda-chuvas, não havia mais trabalho para ser feito. E que, após a minha saída, ele ficaria ali, encostado ao balcão já carcomido, a emitir opiniões sobre a demora nas obras do fim da rua e a canícula que se fazia sentir. Mas sempre tinha gasto um bom quarto de hora com o meu canivete, para já não falar na energia dos motores, etc.
Agradeci atabalhoadamente e saí. Não quis ficar a empatar aquele mundo que não era o meu, já que não conhecia os buracos em causa nem as variações térmicas daquele vale de alvenaria.

A Praça do Chile não fica, garantidamente, dentro ou perto dos meus trajectos habituais. Se não for uma ida a uma cervejaria em busca dos seus bifes especiais, posso passar bem um ano ou dois sem que por lá me passeie.
Mas garanto que facas e tesoiras, guarda-chuvas e afins, passarão a receber os cuidados deste velhote, que ofereceu os seus préstimos a um desconhecido que lhe entrou pela loja dentro, atraído pelo ruído do esmeril.

E não! Não deixo aqui nenhuma imagem que possa identificar a oficina ou o seu operário.
Egoisticamente, este pequeno tesoiro urbano, quero guarda-lo só para mim!


Texto: by me

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