quarta-feira, 14 de julho de 2010

Complexo de invisibilidade


Já vão sendo poucos no panorama da restauração portuguesa. Poder-se-há mesmo chamar-lhes “uma espécie em vias de extinção”.
Os balcões sinuosos, com baixelas, garrafas e empregados de um lado, bancos de pé alto e clientes do outro, faziam de ponto de encontro, refeições ligeiras, ou consumo de líquidos (a granel, da maquina ou pré embalados).
Os clientes habituais das manhãs ou tardes, entre refeições, iam ocupando os bancos com um copinho ou taça pela frente, partilhando o balcão de madeira com o jornal e comentando-o com quem, do outro lado, ia arrumando talheres e pratos, ou com quem, mais ainda do outro lado e sentado de frente, ia lendo outra versão dos mesmos acontecimentos.
O facto de se partilhar a barra ou balcão com outros clientes, lado a lado ou frente a frente, se bem que quebrasse a intimidade do momento do repasto, permitia partilha-lo e às conversas, sendo frequente conhecimentos que se aprofundaram fruto desta informalidade do snack-bar.
Hoje sobraram os “open-space” dos centros comerciais onde, nas horas de aperto, se vêm os comensais de tabuleiro na mão, vagueando de olhar no horizonte, em busca de um almejado lugar vago. E fecharem-se sobre si mesmo nas mesas rápidas de comida plastificada.

Nessa tarde havia tempo até ao relógio de ponto. Com alguma conversa pendente, fomos então até às lambretas, como chamávamos àquela forma de sentar nos bancos.
Era a altura de mudança de turno e nós os únicos clientes ali sentados, mesmo na curva do balcão. Era o melhor lugar, já que dali dominávamos todos os demais lugares vazios. E não tínhamos que rodar tanto a cabeça para falarmos.
Os empregados que estavam de saída empurravam-nos para os que entravam, e vice-versa. O jogo do empurra, típico do Português.
A repetida expressão “Oh faxavor!!!!” era inútil. Passavam lá ao fundo, entretidos com qualquer actividade particularmente importante como o empilhar os pratos ou dobrar os guardanapos, e o seu olhar passava por nós como por uma vidraça. Ouvidos moucos, olhares cegos e bocas mudas, tal como os macaquinhos…

A dado passo ergo o chapéu (o de chuva, que o outro não surtiria efeito), abro-o por cima da cabeça e assumo um ar encolhido e infeliz.
Rapidamente o gerente se aproxima, fazendo a gincana nas curvas do balcão, indagando o que se passava. A minha resposta foi esclarecedora:

“Estavam a demorar tanto tempo a atenderem-nos que receei que o prédio nos caísse em cima de velho. Apenas me protegi enquanto espero…”

O sorriso amarelo que lhe surgiu nos lábios apenas se igualava ao de um catraio apanhado com a boca na botija ou a mão na caixa das bolachas.
Fomos servidos de imediato e continuámos bons clientes e amigos como dantes. E nunca mais sofri do complexo de invisibilidade ali dentro.

Hoje, o balcão e as lambretas foram substituídas por mesas e cadeiras banais, de pinho disfarçado de faia.
Só se distingue dos seus iguais pelos degraus que a ele conduzem e por ainda ter em frente a montra e a porta de uma livraria.

Texto e imagem: by me

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