segunda-feira, 9 de novembro de 2009

No fundo, a justiça ainda é possivel


No Blogue “Jumento”, encontrei este recorte do jornal Público.
Faça-se honra ao final da história, ao jornal que a publica e ao blogue que a divulga.
E não, a fotografia não é da história relatada, mas de uma outra que eu mesmo vivi.

No fundo a justiça ainda é possível!
«Em Março de 2004, o Pedro, quando ia a passear com o filho de 5 anos pela rua de uma das pacatas cidades limítrofes de Lisboa, viu um carro da polícia estacionado em cima do passeio, a perturbar a passagem dos peões, e ao mesmo tempo viu que, dentro de uma loja de produtos informáticos, se encontravam dois polícias fardados em amena cavaqueira com a empregada da loja.
O Pedro entrou na loja, tendo-lhe a empregada perguntado o que queria. O Pedro foi directo: "Queria saber porque é que (os agentes da PSP) para além de não multarem os carros que estão em cima do passeio, ainda por cima põem o carro-patrulha em cima dos passeios" e pediu a identificação dos agentes para se queixar deles.
Os agentes deram a sua identificação mas, logo de seguida, pediram a identificação do Pedro. Este exibiu-lhes o bilhete de identidade mas recusou-se a dizer a sua morada. Os agentes deixaram-no sair da loja mas, um pouco mais à frente, interceptaram-no e conduziram-no à esquadra de trânsito, conjuntamente com o filho, "com vista à sua identificação". Aí chegados, retiveram o Pedro e o filho, querendo saber a sua morada e tirando os dados do seu bilhete de identidade, até que o deixaram ir embora.
O Pedro, no dia seguinte, foi-se queixar disciplinarmente da actuação dos dois agentes da PSP, que o tinham levado para esquadra, numa nítida retaliação contra o facto de os ter censurado por deixarem o carro estacionado em cima do passeio. Nesse mesmo dia, surgiu um minuciosamente elaborado auto de identificação do Pedro, subscrito pelos agentes da PSP em causa, em que referiam que o Pedro se tinha recusado a mostrar o bilhete de identidade e por isso o tinham levado à esquadra, que "aparentava estar sob o efeito de bebidas alcoólicas, devido ao odor que exalava", e que lhes tinha dito "vou-me queixar de vocês, os polícias são todos iguais e não fazem nada mas eu sou jornalista e vou-vos fazer a folha, isto não fica assim".
O comandante da Divisão da PSP ao ler a queixa do Pedro e o auto elaborado pelos agentes, considerou que se estaria "perante uma atitude reactiva" dos agentes, por o Pedro os ter questionado, no seu entender, legitimamente, no âmbito do exercício do seu direito de cidadania.
Não havia motivos que justificassem o acto de identificação a que tinham submetido o Pedro pelo que comunicou o assunto superiormente e determinou, dado poder "ter havido eventualmente algum procedimento que consubstancie o crime de abuso de autoridade", que o assunto fosse remetido ao procurador da República junto do tribunal da comarca.
Aí, a magistrada do Ministério Público não teve dúvidas em arquivar o processo: o Pedro tinha-se dirigido aos polícias por motivos que nada se prendiam com a sua pessoa e a forma como o tinha feito, não só não fora "de forma cívica (...) como fora mesmo provocatória". E acrescentou. "De facto, pelo tom autoritário em que foi proferida (...) é notório que se visava questionar a conduta dos agentes não só naquele acto específico como também na sua autoridade e legitimidade de uma forma geral. Isto, através de uma observação que pelos seus termos era passível de ser considerada razoavelmente por parte dos agentes como intimidativa ou com essa intenção."
Além disso, segundo os agentes, o Pedro encontrava-se alcoolizado e "naquelas circunstâncias transportava uma criança de seis anos pela mão". Na verdade, segundo o Ministério Público, a atitude do Pedro podia "ser entendida como uma tentativa de destituição ou deslegitimação do agente nas suas funções e em última análise é passível de cair na eventual injúria ou ameaça à autoridade"!
O Pedro quando leu o despacho de arquivamento do processo-crime que não fora ele sequer que iniciara, não quis acreditar: era retratado como um perigoso delinquente, bêbado e irresponsável com uma criança pelas mãos, a dizer que "ia fazer a folha" aos agentes, expressão que nem sequer conhecia porque tinha estado anos e anos no Brasil.
Decidiu, então, constituir-se assistente e requerer a instrução do processo. Pediu que fosse ouvida a funcionária da loja, foi ele e os polícias ouvidos outra vez e conseguiu que o juiz de instrução, em Dezembro de 2005, pronunciasse os dois agentes da PSP pelo crime de abuso de autoridade.
Os agentes da PSP, submetidos a julgamento, defenderam-se, afirmando que tinha sido necessário levar o Pedro à esquadra, dado que este se tinha recusado a identificar na loja e que os tinha ameaçado, mas a juíza do tribunal de 1.ª instância, em Maio de 2008, condenou-os na pena de 180 dias de multa à taxa diária de ? 6. O Pedro não recebeu qualquer indemnização porque não a tinha pedido: tal como quando se dirigira aos agentes na loja, o que o movia era um (mero) dever cívico.
Um dos agentes recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, pretendendo ser absolvido e o Ministério Público junto deste tribunal concordou: em primeiro lugar porque não tinha havido qualquer prejuízo para o Pedro (!) e a lei exige no crime de abuso de autoridade que haja ou vantagens para o abusador ou prejuízos para o abusado e, além disso, não se sabia se o Pedro se tinha limitado a "anuir ao convite" para ir à esquadra ou se tinha sido contra a sua vontade (!!).
Mas, no passado dia 29 de Outubro, os juízes desembargadores Abrunhosa de Carvalho e Maria do Carmo Ferreira confirmaram a sentença que condenara os agentes da PSP. O Pedro descansou finalmente: apesar de tudo, os cidadãos ainda podem ser ouvidos, tanto na PSP como nos tribunais, e os abusos ainda podem ser punidos. No fundo, a justiça ainda é possível.»
Imagem: by me

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