sábado, 26 de setembro de 2009

Memórias literárias


Quando eu era pequeno lia tudo o que havia para ler lá em casa. Enfim, creio que não de seguida o dicionário, tal como saltei o Livro de Pantagruel e a Lista Telefónica.
Quanto ao resto, foi tudo, de romances, a policiais, de ficção científica a ensaios, de história às artes, teatro, fotografia, cinema, livros técnicos… Tudo o que tivesse letras era para ser lido, fosse ou não para a minha juvenil idade.
E alternava entre os que encontrava em casa e os que encontrava em casa dos meus companheiros de brincadeiras, que levava para casa com a simpática autorização dos seus pais e a secreta esperança que este meu gosto passasse também para os seus rebentos. Nuns casos assim foi, noutros nem por isso.
Pois entre os livros que li, e que passou pelas mãos e olhos de todos nós foi o “John, o chauffeur russo”, de Max du Veuzit. Ao que recordo, um romance meio trágico, passado em paris na primeira metade do séc. passado, envolvendo donzelas endinheiradas, príncipes russo, fugidos da Rússia vermelha, e pobres, palácios, parques frios de neve e, naturalmente, limusinas.
Foi um livro que todos lemos com gosto, por entre o Júlio Verne, a Enid Blyton, o Eça, o Herculano, o Dantas e outros
Há umas semanas entrei numa dessas livrarias itinerantes a que pomposamente chamam de “feira de livro”. Numa bancada, logo à entrada, vejo-o. Reconheci-o de imediato pela capa, ainda hoje igual à que foi, e de seguida pelo nome e autor. E não resisti a comprá-lo, que mesmo que não fosse tão barato quanto foi, haveria de o reler. Ainda aguarda oportunidade, numa das pilhas dos que aguardam por tal, aqui em casa.
Mas tive o desencanto de, no dia em que o comprei, o ter levado para o trabalho e de nenhum dos que com quem falei o reconhecer. Fosse qual fosse o estrato social ou cultural, ou mesmo a idade. Completamente desconhecido hoje, fiquei na dúvida se a sua popularidade de então não teria sido restrita lá à minha rua e aos meus compinchas.
Um destes dias entrei noutro espaço comercial equivalente, que pululam nas estações de caminho de ferro da capital. E comprei um outro que, não conhecendo, me pareceu apetitoso: “O retrato” de Nokolai Gógol. Sendo que a compra foi a caminho do Jardim da Estrela, lá usei da minha confortável cadeira de lona para o começar a ler. E a minha previsão confirmou-se, que é, de facto, uma delicia, em forma e conteúdo. Mais ainda a quem se dedica à reprodução visual do mundo que o cerca.
E, estava eu entretido, quando passa uma senhora. Da minha idade, mais coisa, menos coisa, olha para capa do que eu tinha na mão e diz qualquer coisa como isto: “Bem escolhido, que isso é muito bom!”
Não perdi a oportunidade e entabulei conversa. Que o tema me interessava e sempre podia ela ser uma potencial cliente do meu “Oldfashion”. Não foi!
Foi, antes sim, uma surpresa quando, a propósito de livros, lhe falei do tal outro romance
Toda a sua cara se iluminou, e soube citar, de cor, o nome do autor e o aspecto da capa, perguntando-me se ainda seria a mesma azul de então. Era! E afastou-se para um banco de jardim onde, de um saco que trazia, foi almoçando, ao mesmo tempo que ia lendo o que também trazia no saco.
E eu, que não fiz aquela fotografia, fiquei menos solitário nas minhas recordações literárias. E com a promessa feita, de mim para mim, que o “John, o chauffeur Russo” será o próximo livro a consumir nos bancos da CP, de e para o trabalho.
A fotografia? Bem, não são os olhos relatados em “O retrato” de Gógol. Até porque nada têm de demoníacos. Mas não me lembrei de melhor forma de ilustrar esta estória recente.


Texto e imagem: by me

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