quinta-feira, 16 de julho de 2009

Fachadas


E o que tem este prédio de especial?
Praticamente nada!
Não conheço ninguém que lá resida ou tenha vivido; não foi objecto de nenhum prémio ou distinção especial; está localizado na Av. Casal Ribeiro, ali às avenidas novas, em Lisboa, e está condenado a uma demolição próxima. Terá uns cinquenta anos de idade e um desenho típico dessa época.
O que faz, então, com que seja digno de nota? Precisamente o seu desenho!
Prestando um pouco de atenção a esta fachada condenada, constatar-se-á que cada um dos andares é diferente dos demais.
Diferenças notórias, como sejam o número de varandas ou janela singelas, ou diferenças subtis, como o remate superior das janelas ou uma decorativa falsa sustentação das varandas. Cada andar tem o seu desenho próprio, a sua identidade única, quase que uma personalidade.
Se se prestar um pouquinho mais de atenção, reparar-se-á que estas diferenças não são tão importantes que acarretem acréscimos de custo significativos. As madeiras são iguais em todas as janelas, o ferro forjado das janelas e varandas igualmente. As diferenças estão mesmo na pedra, material nobre cada vez menos usado em detrimento dos sintéticos, alumínios e plásticos.
Ao olhar para este prédio em fim de vida, construído para ser habitação de famílias, sabe-se que cada família teve uma vida diferente. O próprio espaço construído o permitiu, usando um desenho estrutural uniforme, por motivos de custo, a individualidade de cada uma. À chegada a casa, cada residente olharia para a fachada e, sem grande esforço, identificaria o seu próprio “ninho”, ainda que edificado nas fragas de alvenaria.
A esta facilidade, definida pelo arquitecto, acrescentaria-se, certamente, os materiais e cores das cortinas ou reposteiros e algum eventual vaso de sardinheiras, típico da capital lusa.
O espaço de residência ficaria assim bem definido, criando uma empatia entre ele e os moradores. “Eu vivo ali e gosto disso, é a minha casa!”
Nos tempos que correm, os arquitectos e as directrizes municipais quase parecem impedir esta satisfação. Cria-se o desenho exterior de um dos andares e depois é só reproduzi-lo tantas vezes na vertical quanto a volumetria do local e o investimento do construtor permitem. O anonimato dos bairros, das ruas, dos prédios é cada vez maior. Viver numa cidade actual ou numa povoação ou bairro suburbano tornou-se, por via desta descaracterização do espaço, apenas a satisfação da necessidade básica de abrigo. Grandes ou pequenos, os prédios actuais são o reflexo exterior do factor número que a sociedade cada vez mais impõe aos seus elementos.
Personalidades, aspectos, gostos, vivências, preferências, tudo isto fica, a cada dia que passa, mais normalizado, standardizado, padronizado.
A própria arquitectura, uma das belas artes, está corrompida por esta filosofia de anular o indivíduo ou o grupo básico, negando-lhe o direito à diferença, à afirmação de si mesmo como elemento autónomo.
E os exemplos do passado, onde cada um era um e não apenas mais um, vão caindo no esquecimento, demolidos porque velhos ou incómodos.
Se passardes na Av. Casal Ribeiro, em Lisboa, ou em qualquer outra rua, olhai para os prédios velhotes, alguns já entaipados. E honrai o esforço de alguns arquitectos na criação do espaço individual, em luta com a normalização. E, se prestardes um pouco de atenção ao que as paredes vos contarem, talvez consigais imaginar nesta janela o fazer de um bebé, naquela o ler de um livro, um pouco mais acima a reunião em torno do repasto familiar, na outra o…
E tentai fazer o mesmo num edifício moderno!

Texto e imagem: by me

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