quinta-feira, 10 de abril de 2008

Passageiros

A conversa já estava a azedar. Não era nada comigo, mas levantei o nariz do livro para a seguir, que as vozes já se alteravam
Estávamos no comboio suburbano, parados numa estação. A troca de palavras era entre o revisor e um passageiro. Mas a comunicação mal se fazia.
O passageiro, preto retinto, praticamente não falava português, tentando fazer-se entender em francês. Muito polidamente, mas em francês.
Por seu lado o revisor pouco ou nada sabia ou queria saber daquela língua. Apenas lhe interessava que o bilhete não era válido e havia que pagar a multa. Principalmente aqueles “escarumbas borlistas”, que tinham que pagar como todos os outros
A dado passo, agarra o passageiro por um braço, arranca-o do banco e arrasta-o para fora da composição. Os modos violentos do funcionário da CP pareceram-me muito para além do aceitável perante a atitude do passageiro.
Sabendo que o francês não é uma língua universal (e é pena porque até é bonita) resolvi intervir, quanto mais não fosse como intérprete. Pelo caminho que as coisas levavam, aquele fulano até que iria passar um mau bocado se ninguém o entendesse
Quando cheguei ao edifício, cruzei-me com o revisor que regressava à composição. Espumava e praguejava como poucos.
No cais, passageiros largavam impropérios contra a CP, o revisor e o passeiro borlista. Nada justifica estes atrasos!
E o comboio partiu.

Entrei meio a medo no gabinete do chefe da estação, onde este estava com a dificuldade que eu previa: a língua. Mas agora o tom da conversa tinha baixado para níveis civilizados.
Ofereci-me para traduzir, e a história assentava em mal entendidos. Tinha ele comprado uma senha de passe, aquando da sua mudança de residência para aquela zona, havia dias. Tinha perguntado se valia por um mês, o que lhe disseram que sim. O que não lhe explicaram era que se tratava de um mês de calendário e não de trinta dias a contar da data de compra.
E os bilhetes anteriores que tinha consigo comprovavam a veracidade da história.
Acontece, porém, que o chefe da estação já nada podia fazer. Apesar de estar incomodado com os modos do revisor, o auto já estava levantado. A multa teria que ser paga, até porque o infractor já estava identificado.
Havia apenas uma coisa a fazer: Apresentar a história no Gabinete de Apoio ao Cliente, no Rossio, e esperar que a sede resolvesse a questão. Ele próprio telefonaria para lá para contar a história.

Já que estava apeado, decidi acompanhar o caso. Fui com o passageiro até lá. A probabilidade de encontrar gente que fale francês é pequena nos tempos que correm.
Pelo caminho contou-me a sua história, rica de detalhes de países pobres e de dificuldades. Migrante clandestino, tinha conseguido legalizar a situação havia pouco, mas este tipo de situações só lhe estragavam as possibilidades de ficar em permanência.
Na altura, trabalhava na construção do tabuleiro ferroviário da ponte 25 de Abril. No turno da noite. E a jorna já estava perdida, que não lha iriam pagar com aquela atraso todo.
Chegados ao Rossio, apresentei o caso, mas nem tive muito que fazer já que a simpática senhora que ali estava não só já sabia do caso como dominava o francês.
Apesar disso, e tomadas as notas necessárias sobre a questão do bilhete, eu não me fiquei, que a questão da atitude do revisor me incomodava.
Ali mesmo formalizei queixa contra ele, por comportamento racista, impróprio e violento para com os passageiros.
E fiquei de voltar a saber o resultado das duas situações.

Passadas duas ou três semanas, recebi uma carta das relações públicas da CP, onde era informado do arquivamento do processo contra o passageiro, por terem sido provadas as suas argumentações.
Quanto à minha queixa sobre o revisor, nunca me responderam, mas deixei de o ver naquela linha, como era hábito. Suponho que tenha levado a sua raiva latente contra outras cores para outro lado. Pobres utentes dessa outra linha!

E o passageiro? Durante algum tempo cruzei-me com ele na estação. Depois deixei de o ver e aos seus conterrâneos. Parte da comunidade Zairense migrou deste subúrbio para um outro qualquer mais barato, e ele deve tê-la acompanhado.

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