sexta-feira, 14 de março de 2008

Uma lição


Tenho sempre comigo, no meu colete, duas canetas.
Uma Parker, de tinta permanente, das baratinhas. O seu suave arranhar no papel é um prazer caligráfico. Não fora a minha péssima caligrafia, e usa-la-ía muitas mais vezes.
A outra é uma Rotring. É a chamada “três em um” ou ainda “vira bicos”. Permite escrever com tinta azul, tinta vermelha ou grafite.

Tenho por esta uma estimação particular, já que me foi ofertada por um amigo e companheiro de muitas andanças fotográficas e de salas de aula
Quando ma deu, aquando do meu início das minhas actividades lectivas, ele e a esposa disseram-me:
A tinta azul é para escreveres os sumários no livro de ponto; o lápis para os apontamentos na caderneta e a preparação das aulas; a vermelha, para as anotações disciplinares e as reprovações.

Tenho um terrível orgulho em poder afirmar que, passados todos estes anos, a tinta vermelha ainda é a original. Nunca a tive que usar ao serviço da escola, quer fosse para castigar algum aluno ou para reprovar fosse quem fosse. O meu princípio sempre se pautou por: "Nunca chumbarei um aluno nem marcarei faltas disciplinares!”

Não porque seja demasiadamente mole ou permissivo. Quem me conhece sabe bem do contrário. Sou rigoroso e exigente e a palavra de ordem comigo é “Trabalho”. Muito trabalho.
Mas a verdade é eu não dou aulas nem ensino. Ajudo a prender. O meu papel é, ou foi, o de ajudar a aprender.
As matérias que eu expunha, explicava, demonstrava, etc, não se destinavam a demonstrar que eu sabia aquilo. Destinavam-se, antes sim, a que todos aqueles jovens que ali estavam as viessem a entender e saber. E que delas pudessem partir para outros saberes e experiências. Todos! Porque era para isso que ali vinham.
Uns com mais facilidade, outros não tanto, uns mais à-vontade nos conceitos teóricos, outros mais expeditos nas questões práticas, mas todos eles terminaram aquelas muitas semanas de trabalho conjunto a saberem e terem as competências mais que mínimas, e muitos para além disso, que se lhes exigia.
E se algum tinha mais dificuldade nesta ou naquela área, ali estava eu, como outros aliás, para os ajudar. Dentro ou fora de aula, dentro ou fora dos períodos lectivos, por vezes mesmo fora de horas e tarde na noite. Afinal, era para isso que ali estávamos todos.
Esta atitude de “ajudar a aprender” no lugar de “ensinar”, de todos nós envolvidos neste processo, transbordava muito para além das matérias de imagem, técnica, estética, fotografia e vídeo que ali nos levava.

Recordo em particular uma ocasião, no regresso após o interregno estival, em que se fez uma “revisão da matéria dada”, usando para tal um exercício prático: Grupos de três, câmaras e microfones e vá de irmos para o pátio simular entrevistas.
Havia na turma uma aluna particularmente fraca, com dificuldades de aprendizagem e sociais de diversa ordem. Logo após ter proposto o trabalho quase entrei em pânico ao pensar: “Ninguém vai querer formar grupo com a Etelvina (nome fictício)! E agora? Defino eu a organização dos grupos?
Erro meu. Foram os melhores, os que mais sabiam e estavam à-vontade com o material, os mais rebeldes e criativos, que logo se ofereceram para com ela formar grupo e irem trabalhar. E não se tratou de uma questão de se exibirem ou de liderança. Foi mesmo “Alguém precisa de ajuda e aqui estamos.
Sei que aquelas três horas de trabalho ao sol e à sombra de Setembro foram produtivas. Os saberes e as competências do ano anterior foram ali recordados, e mais uns pozinhos acrescentados.
Mas o grande ganhador fui eu, ao ver aquela solidariedade insuspeitada, aquela generosidade interior e natural. É uma lição que não esqueço.

Esta caneta que trago no bolso do colete ou da camisa, volta e meia recorda-me que o ser humano não é como aparenta e que, quando tem oportunidade, ultrapassa-se muito para além do que se dele espera.
Em particular a gente jovem.

1 comentário:

Anónimo disse...

Que pena que nem sempre assim seja e seja cada vez mais raro.